A infância e o mundo virtual (2)
“Danço eu, dança você, na dança da solidão” (Paulinho da Viola)
Estávamos em período de férias escolares, mas mantendo aulas no Chutebol em horário especial, como é de costume. A turma vinha chegando aos poucos no final da tarde, um papai aflito se aproximou. Quase fazendo uma confissão, demonstra certa angústia ao mesmo tempo em que me agradece: “A única coisa que tira o fulano do game, nas férias, é esse futebol” – e se retira, entre esperançoso e aliviado.
[Foto: Leo Aversa]
‘Fazer sentido’ inclui prazer, mas não só. Sentir-se autor (apropriar-se afetivamente) de uma tarefa, atividade ou projeto é, precisamente, aquilo que crava no sujeito o sentimento de potência, de criar alguma coisa. A descoberta do mundo real, na infância e adolescência, faz tanto mais sentido quanto o sujeito puder, para além de cumprir seus necessários papéis sociais e familiares, sentir-se criativo.
A criatividade da qual estou falando não é a dos grande gênios das artes, da literatura ou dos esportes. Mas da vida cotidiana. É a possibilidade de realizar projetos genuinamente pessoais e, não se enganem, a infância também precisa deles. Por menores que pareçam aos olhos dos adultos.
O mundo virtual também pode, evidentemente, comportar elementos ligados à criatividade. Tais projetos, no entanto, têm uma limitação estrutural: estão naturalmente atados às construções imaginárias e cognitivas, não agindo em favor do amadurecimento psicomotor. Ou moral. Social, quiçá, mas bastante discutível, frágil. Os melhores jogos, apps, redes sociais e que tais são simulacros quase perfeitos da realidade, mas ainda são isso: simulacros. Uma rosa é uma rosa é uma rosa, como naquele poema.
Hiperdimensionar o mundo virtual – e estamos fazendo isso sem perceber – significa viver imerso nestes simulacros. Crianças e adolescentes que não encontram motivos (sentido) para se aventurarem o suficiente na vida real estão dizendo para os adultos à sua volta: “nada me apaixona”. Transferem sua carga emocional e potencial criativo para o mundo virtual. Enxergam ali o único lugar seguro para, efetivamente, se lançarem e serem autores de uma história – na onipotência do imaginário. Aí é que o calo aperta.
A fantasia de controlar alguma coisa nesse mundão de deus (ou sem ele) é própria da espécie. Precisamos ordenar alguma coisa. Justamente para que nossas vidas ganhem sentido, cor, motivos enfim para vivermos com gosto. Esta é uma das razões, aliás, para a disposição natural das crianças em brincar. Na brincadeira elas podem exercer seu controle onipotente de imaginar, mandar, fazer de conta – mas no mundo real! É no diálogo do imaginário infantil, com as possibilidades que a vida real oferece, que o sujeito experimenta e testa os limites da realidade, à qual, afinal, termina por submeter-se. “Brincar é fazer“, dizia um antigo psicanalista inglês.
Ora, se a hiper-realidade virtual oferece, ao sujeito, a promessa de ser autor de uma história sem confrontação com a realidade e seus limites (debilidades do corpo, desconfortos morais, lutar para se enturmar), então a vida real não consegue competir.
Não se o sujeito sentir-se sozinho para enfrentar tudo isso. Sozinho, não dá.
Não é à toa que o futebol, como bem sabe o papai do início da história, tem um apelo enorme para mostrar a essa meninada a vida como ela é. Não é à toa que eles respondem como, aposto, respondem a qualquer atividade que envolva momentos gostosos e aonde se sintam queridos. Nos casos muito difíceis, pode ser que a pessoa em questão já esteja muito desesperançada com suas possibilidades na vida real, e aí o trabalho é dobrado.
Se o que escrevi faz algum sentido, essa molecada está precisando de um olhar mais atencioso de nós, adultos. A fuga desenfreada para o mundo virtual pode ser sintoma de profundo desencanto e solidão.
De todo modo, sensibilizá-los para encarar as gangorras da vida só será possível se nós mesmos estivermos nelas. Eles não são bobos de brincar de gangorra sozinhos.
Todo mundo sabe que não tem a menor graça.
Aquele abraço, saudações esportivas
Hoje, fiquei surpreso quando, na expectativa de entrar no blog antigo, vi o novo site.
Muito mais limpo, de fácil acesso, simples. Demorou, mas ficou muito legal !
Destaque para a localização no “footer” e na página de “Contato” (essa em que estou agora).
Vocês mandaram muito bem em entender que um dos importantes critérios para escolha da escola de futebol para os clientes é a proximidade com a escola, ou com a sua casa.
É um prazer e um orgulho dizer que eu trabalho com uma escola de futebol que acredita no que faz, em sua identidade, tem uma metodologia própria de trabalhar que se baseia nessa crença, e que é composta por pessoas que amam o que fazem.
De verdade,
Lucas Gomes
Muito bom, Rodrigo!
Texto bastante procedente nos nossos dias.
Li na íntegra.
Bjs,
Irles
Esse tema é muito importante. Falo porque já conheci um rapaz de 16 anos que está sempre jogando videogame. Os pais dizem que é uma questão geracional e deixam correr solto, por entender que nada podem fazer. A família insiste em não ver ‘problema nenhum’ no videogame, chegando a defendê-lo ou trata-lo como inofensivo. O que parecem não ver é o isolamento no qual o rapaz se encontra e como se esconde atrás do videogame para não encará-lo. Sua clara situação de isolamento já trouxe problemas muito sérios para a sua vida, inclusive ameaçando-a.
Ou seja, esta questão é urgente. O blog já a abordou em outro momento e entendo que para os pais esse apoio é muito importante. Acho que além do exposto no artigo, tem também o estilo de vida praticado na cidade, sob paredes de concreto armado, ar-condicionado, todos trancados, sem contato com a natureza… Cresci na área rural, com espaço e natureza, e tenho certeza que isso foi determinante na minha vida. Entendo também que o fascínio com games não se restrinja à cidade, afinal de contas muitos têm acesso a celular hoje, inclusive no campo. Mas desconfio que esse cotidiano na cidade seja muito nocivo. Por isso batalho por uma outra infância e outros espaços de desenvolvimento infantil mais próximos da terra e da natureza, e mais distantes da televisão. Mesmo assim, a batalha é dura pois a orientação das escolas ainda é outra.
Saudações
Dialogar e refletir são as formas de encontrarmos as soluções e criatividade tem a ver com tudo isso.
Muito bom o artigo. Que os pais leiam e se inspirem!!!
Bjs
O tema é atual e os games estão tão onipresentes – não é uma criança ou outra, são todas! – que certamente é assunto que interessa a muitos.
Parabéns pelo site!
Perfeito, Rodrigo. Faço minhas as suas palavras: “essa molecada está precisando de um olhar mais atencioso de nós, adultos. A fuga desenfreada para o mundo virtual pode ser sintoma de profundo desencanto e solidão.”
Obrigado, pessoal, muito bom poder contar com a participação de vocês! Grande abraço!