Amadurecer
Estava o fulaninho, ali pelos sete anos de vida, a jogar futebol com o cadarço desamarrado. Como é por esta idade (um pouco antes, um pouco depois) que a maioria das crianças alcança com alguma segurança a fina coordenação para amarrar o próprio tênis, parei a partida para que ele pudesse dar um jeito na situação – e falei, em tom de troça: “E agora, como fica?”
Fulano se agacha, fico à espreita. Pega daqui, pega de lá, consegue mas não consegue, o laço desmonta. Pergunto: “Cara, você sabe amarrar o cadarço?” Ele se vira pra mim e diz, um pouco injuriado: “Eu sei, mas não consigo!” Bem, não sou assim tão cruel e ajudei meu pequeno amigo naquela situação. Mas fiquei pensando em sua justificativa: o que significa ‘saber’ alguma coisa – mas não ‘conseguir’?
A solução encontrada pelo menino para explicar o que estava acontecendo foi engenhosa: atende a uma demanda que, ele sabe, é esperada pelo professor (saber amarrar o cadarço); mas, ao mesmo tempo (e aí está o paradoxo) afirma com veemência aquilo que falha, que vacila. Mostra-se em sua realidade humana, imperfeita. Pode parecer uma viagem danada mas, para quem tem olhos de ver, as crianças oferecem de bandeja suas angústias. Ele tentou me dizer que, mesmo sabendo intelectualmente alguma coisa, tendo a informação correta e sabendo o que é esperado, ainda não tinha a maturidade psicomotora para concluir aquela tarefa. Podia, simplesmente, ter dito: “Não, não sei amarrar o cadarço”. Mas fez questão de enfatizar que sabia, donde surge a contradição: “Sei, mas não consigo”. Tomo a liberdade de, por experiência profissional, tratar deste caso como ilustrativo de uma certa condição atual.
Ora, o que será que está sendo exigido às crianças desta época que, desde muito pequenas, são obrigadas a ‘saberem’?
Responder às mais diversas demandas formuladas pela escola e pelos adultos, a partir de um ‘saber’ que tem origem, no mais das vezes, na torrente incessante das informações às quais vive exposta diariamente não configura, a meu ver, sinal de inteligência. Muito menos do amadurecimento geral de suas condições que é, grosso modo falando, o que entendo que uma criança precisa atingir para ir atravessando as diversas fases da vida. E isto vale para os adultos, também.
Se já é sabido que, em que pese o valor e a beleza do bom desenvolvimento intelectual, ele por si só não basta ao sujeito para encarar os dilemas da vida, que dirá um punhado de informações aceleradas, sem a articulação necessária para que se transforme em conhecimento. E atravessar estas duas etapas exige uma coisa: tempo. Que fazer? Com relação à nossa vida cotidiana, corrida dos adultos, vou poupá-los de minha ignorância. No campo da educação, entretanto, posso arriscar algum palpite.
Salvo engano, já existem movimentos na Terra, nos mais diferentes níveis educacionais (das creches às universidades), em especial nos países avançados, que procuram dialogar com o conhecimento de outra maneira. A corrida enlouquecida pelo acúmulo de informações não é o que contará no futuro. As informações, as que merecem atenção ou a lata de lixo, estão aí, à mostra. O que conta cada vez mais é a capacidade de selecioná-las, articulá-las, construir conhecimento, ser capaz de concatenar pensamentos e, sofisticando, emprestar alguma qualidade moral e afetiva a tudo isto. Não estou falando de uma educação de estereótipo bicho-grilo, ou de que conteúdo não importa. Estou lembrando (e sou só mais um) das outras coisas que importam.
Proteger o sentimento de infância é preservar o espaço e o tempo de seu amadurecimento. Neste percurso há espaço para a falha, o erro, o não-saber, as reentrâncias de uma construção mais legítima de conhecimento. De quebra, falhas e erros provocam discussões, sensações diversas, equipam o sujeito para uma vida mais profunda. Uma criança madura para sua idade é diferente de um adolescente precoce. Um adolescente maduro para sua idade é diferente de um adulto precoce. As crianças não precisam saber de tudo. Podem fantasiar que sabem, mas a fantasia é livre. Quem não pode cair neste conto, somos nós, adultos.
Noutro dia, mais recente, meu amigo da história se agachou para amarrar o cadarço novamente. Percebi que ele vinha treinando há algum tempo, e eu sempre esperava o suficiente para que pudesse acertar ou fracassar, que pedisse minha ajuda ou que me dispensasse com desdém. Numa das vezes em que conseguiu, perguntei: “Ah, você já sabe amarrar o cadarço?” “É. Eu não sabia, mas agora eu sei”. E saiu correndo atrás da bola.
Quando pôde admitir o que não sabia, encontrou-se com o desconhecido; sobrou espaço para que pudesse aprender. Amadureceu o suficiente – conseguiu.
Aquele abraço, saudações esportivas
Rodrigo, excelente – e oportuno – texto!
Obrigada
Professor, parabéns pela iniciativa… Adoro seus textos!
São coerentes e bem desenvolvidos.
Muito interessante, e muito bom.
Rodrigo, adorei mais este seu texto.
Concordo que a fantasia é fundamental, principalmente para o universo dos pequenos!
Compartilho aqui minha experiência com vocês; fiquei viúva do pai do meu Gabriel quando ele tinha pouco mais de 3 anos e durante um bom tempo, ele inventava as histórias mais malucas do mundo que, quando eu perguntava onde e quando aquilo havia acontecido, ele respondia; "Foi na floresta que fui com meu pai". Nessa floresta, onde ele só ia com o pai dele (já falecido) era permitido tudo! Tubarões roxos voadores, árvores que andavam e falavam, animais híbridos e coloridos e por aí vai…
Eu sempre "acreditei"nos seus relatos mas hoje, já com 12 anos, de vez em quando, ainda vem uma história digamos… duvidosa e fico sem saber se finjo acreditar ou se contesto. Tento nunca corrigi-lo na frente dos amigos, principalmente se ele estiver se gabando (rsrsrs) mas penso ser importante mostrar pra ele que não é legal – nem necessário para ser aceito – inventar coisas. Que a verdade é sempre melhor. Mas cercear a fantasia também me incomoda! Afinal a vida real já é tão dura!
Ai, como educar é difícil, né?
Olá Isabel,
Muito corajoso e sensível este seu depoimento. Educar é realmente uma tarefa árdua, por isso o cuidado em não ficar dizendo o que é certo ou errado – mas sim compartilhando experiências. Tentar juntar a estas algum corpo teórico é a própria busca do sentido em nossas ações.
Fico muito feliz em receber teus comentários.
Um beijo pra vocês
Rodrigo,
ótimo texto! Gostei muito também do "Eu sei, mas não consigo!". Sensacional! A figura animada dos relógios também é muito boa.
Tem coisas que eu imagino como deveriam ser, penso que deveria fazer, mas não ponho em prática. Quer dizer, eu sei, mas não consigo. 🙂
Um grande abraço.
Rsrs isso aí, Estevão, grande abraço!
Rsrs isso aí, Estevão, grande abraço!
Rodrigo, aprecio muito as suas publicações. Essa foi especialmente tocante para mim.
Obrigada por sua dedicação no trabalho que desenvolve.
=)