

Aquele olhar
É um rapaz bom de bola, claramente querido pelo entorno: colegas, pais, familiares.
Tem traços simétricos, transparece uma beleza em seu rosto. Parece de bem com a vida, ter todos os recursos necessários (afetivos e materiais) para fazer sua jornada com relativa tranquilidade.
É notório que vive recebendo elogios (gente fina, bom de bola, bom de surfe), cercado de um mundo bastante agradável.
Até que entra outro esporte no meio; e um treinador, talvez um pouco chato.
*
O rapaz tem uma função a cumprir. Uma não, algumas. Para fazer parte de uma equipe, em especial em momentos competitivos, há outras exigências. Lembro que ele é bom de bola, mas isso não é o suficiente. Ele sabe jogar ‘do jeito dele’ – mas já não é mais o suficiente.
O menino leva um bronca, duas, três. Parece não entender o que está acontecendo. Seu olhar denuncia uma raiva – que talvez seja bem-vinda, pensa o professor.
*
O esporte não se importa. De onde você vem, o quão bonito você é, quais as posses de sua família ou o cara gente fina que você é.
Talvez em especial nas classes média e alta, munidos de tantas virtudes, é comum que alguns meninos passem realmente a acreditar que já sabem tudo; ou que não precisam de mais nada; ou que com um belo sorriso e uma camaradagem irão resolver qualquer questão.
Um Ideal de Eu vai se erigindo e, falsamente, acreditando ser inatacável – até alguém apontar que “não, não é assim“. Uma vez, duas vezes, quantas vezes for, se estivermos falando de um processo realmente educativo.
Não se trata de ter ou não ter razão, mas de a criança ou adolescente, nestas condições, poder descer do pedestal imaginário, ralar a bunda no chão e comungar das dores mortais de todos que estão em quadra suando.
Este convite à realidade, num processo de educação esportiva, se tiver apoio da família pode levar a ganhos sociais mais amplos, na medida em que o sujeito pode realizar uma necessária operação na imagem de si que ele acredita que precisa sustentar.
Não, ninguém é isso tudo. É muito legal ter qualidades, virtudes e um ambiente favorável mas, em absoluto, para aqueles que estão dispostos a viver de verdade, não há garantias.
*
A raiva no olhar é benfazeja. Não é para ser revidada, mas acolhida. É por ela que a realidade entra, que toca o coração daquele que se julgava inatingível. “Você é uma pessoa comum“, foi o que soou aos ouvidos.
Ferir o narcisismo, nestes termos (em processo, não de maneira vingativa ou aleatória), tem a função de fazer avançar, usar a agressividade para poder buscar alguma coisa, nem que seja uma resposta a esse treinador; nada está ganho, não existe jogo ganho, todas as suas qualidades não fazem de você – nem de ninguém – uma pessoa com a vida ganha.
Nos termos em que estou tentando colocar, uma boa refrega no futebol é capaz de mexer com estruturas internas importantes, que de outra maneira dificilmente seriam mexidas dadas as condições ambientais neste tipo de situação.
O esporte pode ser um sopro de vida real para aqueles que, tendo sido bafejados pela sorte, acabam por ficar encastelados em seu próprio imaginário. No longo prazo, pode-se colher vento.
*
O menino passou a dar outra resposta em quadra. Falava menos, concentrava-se mais.
De sua vida familiar e social, mais não sei.
Mas sei que aquele olhar de raiva, aquele primeiro de todos, foi extremamente importante.
A vida real é de quem se joga.
Aquele abraço, saudações esportivas