Bolhas

Por Rodrigo Tupinamba Carvao
em 16/02/2017 |
Categorias: Sem categoria
Caros (as),

É muito importante, para crianças e adolescentes, que possam usufruir dos espaços públicos da cidade, pois isto afeta, de maneira positiva, o processo de  socialização. Esta não é algo, digamos, natural. Muito embora escutemos aqui e ali que o humano é bicho sociável, isso só se dá a contento a partir de determinadas condições. Muitos utilizam, mesmo, o termo ‘humanização’, para se referir à soma da formação da subjetividade com uma inserção social satisfatória. Um gato, já nasce gato. As pessoas se humanizam aos poucos.

A socialização é uma conquista gradativa da criança, na medida em que ela consegue confiar cada vez mais em si própria e no ambiente em que vive. As posturas de defesa podem ceder e, aos poucos, dar lugar à curiosidade, às descobertas, enfim aos engajamentos nas relações com as outras pessoas; com o ‘não-eu’.
A busca pela semelhança é natural e faz parte do próprio narcisismo, estruturação fundamental sem a qual não nos mostramos em nossa singularidade. Pode parecer piegas, mas cada um de nós é realmente único. No entanto, quando se torna desmedido, este mesmo narcisismo acaba por configurar uma prisão para o sujeito (embora ele mesmo possa não enxergar). É quando a bolha narcísica não cede e o reconhecimento das diferenças fica dificultado, muitas vezes num nível assustador.
Neste contexto, surgem os comportamentos estereotipados em relação às pessoas percebidas como diferentes: os ressentimentos, os ataques, o não-reconhecimento, a ridicularização e o medo. O ‘não-eu’ passa a ser visto como uma ameaça que, na cabeça do sujeito nestas condições, legitima seu comportamento infantilizado.

Voltando ao primeiro parágrafo, percebo, atualmente, um predomínio excessivo do convívio social infanto-juvenil nos espaços privados. Refiro-me às classes média e alta. Evidente que não há mal algum nestes lugares (escolas, shoppings, cursinhos, casas de festas, etc), os quais as pessoas também podem aproveitar. Mas as ruas, parques e praças são, por excelência, locais que propiciam o convívio com uma diferença mais profunda – de classes sociais, maneiras de se colocar, jeitos de ser, sutilezas outras que vão enriquecendo a personalidade do sujeito. (Nos estratos mais pobres da população, a percepção comum é justamente a oposta: é preciso tirar as crianças das ruas, para distanciá-las do mundo do crime).

Existem algumas razões para este predomínio dos espaços privados. A primeira e mais evidente é o medo da violência, absolutamente justificado. Se brincar na rua não é seguro, então não se brinca na rua. Outro motivo, não tão incisivo como a violência mas que também influi, é simplesmente a enorme quantidade de carros em trânsito, que tomam atualmente até as ruas menores, mais próprias para o convívio infanto-juvenil (muitos estudiosos têm apontado este fator como relevante). Um trânsito muito intenso, além dos problemas de mobilidade que conhecemos, é ainda por cima danoso à apropriação da cidade pelas crianças. Dá medo.

Um último fator, e talvez o mais importante, seja o próprio imaginário social. A ideia de que pagar para usufruir por todos estes serviços privados resolve o problema da educação, é falsa. Pois se admitirmos, grosso modo, que a educação é a soma das habilidades individuais (cognitivas, motoras, afetivas) com a socialização, se esta última fica reduzida em suas possibilidades, uma parte do processo fica capenga. Por mais que se preencha o tempo infanto-juvenil com cursinhos, deveres e afazeres, isso não é garantia de boa educação, e os países avançados nesta área já descobriram isso. Evidente que as condições de vida, nestes países, são outras.

Enfim, as pessoas vão continuar se socializando. É um ativo da espécie, seja em espaço público ou privado. O que desejei chamar a atenção foi para a qualidade deste processo. Abrir mão, ou menosprezar os espaços públicos neste caminho, significa fazer pouco de valores como a solidariedade, o reconhecimento das diferenças, a sagacidade e outros refinamentos das habilidades sociais humanas.

Que o mundo atual, com suas demonstrações inequívocas de narcisismo desmedido e intolerância – convenhamos – não deveria menosprezar.

Aquele abraço, saudações esportivas

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6 Comments

  1. Davy fevereiro 16, 2017 at 4:45 pm - Reply

    Meus parabéns pela reestréia!
    Excelente artigo!
    Enorme abraço

  2. Peter fevereiro 16, 2017 at 4:46 pm - Reply

    Belo texto, Presida

  3. Estêvão Kopschitz Xavier Bastos fevereiro 16, 2017 at 10:08 pm - Reply

    Ótimo, como sempre, Rodrigo, obrigado. O medo da violência é o motivo mais óbvio, além do trânsito nas ruas movimentadas, mas a ocupação das ruas mais tranquilas por carros estacionados é algo a que não se dá a devida importância, mas, certamente, é um inibidor do uso da rua como espaço de lazer.
    Outra coisa que se perde é o sentimento de que a cidade é nossa, é de todos, é minha. Ela não é mais nossa, não é de todos, não é minha. Perdi parte do direito que tinha sobre ela. Inclusive os mais pobres perderam. Como você bem observa, querem tirar os filhos das ruas – traduzo: gostariam muito de pô-los em espaços privados…
    Mas, como disse, vamos continuar nos socializando.

  4. Enio fevereiro 20, 2017 at 8:36 am - Reply

    Muito boa a exposição; fica um dilema, em proteger, ou deixar viver as realidades, num mundo onde as realidades são individuais e contraditórias, seguras ou violentas, famintas ou satisfeitas. Numa faculdade como a Uerj, o interessante em nossa turma foi exatamente a junção de realidades, de bairros, de raças, de culturas, e o mais bonito e satisfatório, o convívio pacifico, o respeito as individualidades, e a empatia com a situação de todos. Forte abraço.

  5. Maria Xavier fevereiro 20, 2017 at 8:36 am - Reply

    Rodrigo,
    Muito Bom!!!! É isso aí, ampliar as relações, participar do meio social e principalmente se mostrar frente ao mundo enfrentando seus fantasma e fortalecendo o seu "EU" interior.
    Beijos,
    Maria Xavier

  6. Rodrigo Tupinambá Carvão fevereiro 20, 2017 at 8:37 am - Reply

    Isso aí!

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