Cadarços
O menino quase tropeçou. O professor interrompeu a partida e pediu a ele, talvez pela terceira vez, que amarrasse os cadarços.
O tempo corria, a turma se impacientava, resolvi me aproximar. Ele conta oito para nove anos, então lancei mão do lembrete: “Fulano, até os sete, no máximo oito, é preciso saber amarrar o cadarço, lembra do nosso trato?”
O menino se impacientou. Ergueu-se, cadarços desfeitos, falou alto: “Professor, é que eu não tenho tempo!”
Pensei em fazer uma brincadeira com sua frase, ia soltar um sorriso de lado mas não deu tempo – ele prosseguiu em tom de desabafo: “Preciso acordar cedo, tem futebol, tem natação, outro dia tem inglês e judô, tem escola e dever de casa, tem que comprar presente pra um monte de festa… eu não consigo aprender!”
Me contive. Fiz silêncio. A turma esperava. “Você está certo, fulano, com tudo isso deve ser muito difícil aprender. Vou te ajudar a amarrar agora e depois talvez conversar com seus pais.” E a bola voltou a rolar.
O discurso é autoexplicativo. O segundo em que eu imaginei poder brincar com ele sobre não ter tempo de amarrar o cadarço virou poeira quando escutei a palavra ‘aprender’. “Não tenho tempo de aprender”, ele fez questão de frisar.
O pequeno jogador parece ter falado por toda uma geração com uma verdade cortante. Não sei até onde cabe qualquer explicação ou interpretação mais clara do que aquelas palavras.
O que fica esfregado na cara é que amarrar o cadarço é uma coisa simples; no entanto é uma construção que, como o rapazinho bem sabe, implica um processo de aprendizagem. Motora. Com um deslize, psicomotora, pois tem implicações de autoestima e, consequentemente, sociais.
Que sintoma é esse atual, em que percebemos que as crianças se mostram menos sagazes, menos espertas, e no entanto com mais e mais afazeres – em nome de quê, mesmo?
Cabe um mundo naquele ‘amarrar o cadarço’. Naquele ‘eu não tenho tempo para aprender’. Cabe sentimento de inadequação social, fragilidade motora; dificuldades múltiplas de aprendizagem, o famigerado ‘déficit de atenção’, ansiedades. O cardápio é extenso.
Para não alongar, o lembrete de que o tempo, para além de seu aspecto objetivo e cotidiano, é também subjetivo. O tempo do amadurecimento, se vivido a contento, é aquele que cimenta as aprendizagens verdadeiras, consistentes, de dentro para fora – no sentido de permitir experimentações, falhas e descobertas.
A descoberta pessoal gera confiança em si mesmo, como uma conquista – aprender.
Completamente diferente é uma adaptação apressada às mil e uma demandas do tempo puramente cronológico, do qual o aluno dava queixa. Nesses casos, pode-se até formar uma casca, que ofereça ao mundo externo alguma resposta imediata quando, por dentro, a pessoa permanece frágil, imatura.
Muitas vezes quem denuncia a imaturidade, além de este ou aquele comportamento inadequado ou queixas emocionais, é o corpo.
O amigo em questão está, claramente, lutando por sua saúde, e a demonstração cabal de que ainda dispõe dela é o próprio desabafo, com profunda reflexão acerca de sua própria vida.
Amarrar os cadarços, neste contexto, remete às coisas mais simples que uma criança precisa aprender com naturalidade: brincar, fazer amigos, resolver pequenos conflitos, ter algum senso de justiça, ler e refletir sobre o que leu, fazer contas, executar movimentos naturais (correr, rolar, saltar, lançar) com alguma destreza. Cuidar de si e do entorno.
O tempo, enfim, para fazer o laço, o outro laço além do cadarço: o laço social.
Aquele abraço, saudações esportivas
Que texto necessário e ótimo ! Espalhando! Abraço, @rodrigotupicarvão
Obrigado!
Rodrigo:
Amarrar o cadarço constitui um dos mais importantes atos complexos de autonomia de uma criança. Ayuda a coordenação olho-mão-pé, a coordenação fina como movimento dos dedos, a geometria espacial no laço , o simultâneo e o sucessivo no sentido simbólico e … a variável temporal muito bem explicitada no teu comentário. Num mundo imediatista onde o mandato é atuar já sem perder tempo pela ameaça de ficar para trás, respeitar os tempos que as crianças precisam para conquistar sua autonomia progressiva fala da atitude ética dos profissionais e técnicos que trabalham com a infância e a adolescência.
Abrs
Jorge
Ah, q bem dito! Adoro! Saudações e saudades
Bjs
oi Rodrigo, tudo bem?
que interessante este texto! quantas reflexoes importantes, adorei!!
enfim, muito bom que o Chutebol seja mais do que um jogo, e que o tempo dedicado a ele seja de desenvolvimento e reflexão para jogadores, treinadores e torcedores!
obrigada!
Que bonito!
Obrigada por partilhar a reflexão e nos fazer pensar sobre… Vivemos sem tempo de olhar até para os laços desamarrados…
Abraços,
Marta