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Campo de futebol sem treinador

Transcrevo abaixo pequenos trechos de um livro muito legal: “Quando as crianças dizem: agora, chega!”, de Francesco Tonucci (2005). O autor se propôs a, simplesmente, escutar as crianças; há relatos pra lá de interessantes. Abaixo, a frase de uma criança, seguida do comentário do autor. Aí vai:

Eu queria um campo de futebol sem treinador’, diz a criança.

 

(…) Antigamente se jogava futebol, e isso se fazia nas condições ambientais de que se dispunha e com os materais que se podiam encontrar. O campo podia ser um gramado mais ou menos plano, ou então uma praça, com piso cimentado, ou asfaltada como a praça da igreja ou a rua. As redes de gol podiam ser indicadas por hastes enterradas ou por tijolos (…). Muitas vezes, se jogava com uma única rede, devido à limitação do espaço disponível. Geralmente não havia juiz, as regras eram aproximativas e sua aplicação duvidosa, pois era confiada aos próprios jogadores. (…)Não havia camisetas para os times, nem chuteiras. Apesar disso tudo, jogávamos todos os dias ou então todas as vezes que podíamos; era divertido e ninguém desistia porque tinha cansado do jogo.”

Hoje, a maioria as crianças possui o uniforme esportivo oficial, com camiseta, calção e chuteiras, mas, para brincar, a criança é matriculada em uma escola de futebol e precisa jogar não apenas de acordo com as regras canônicas, mas também de acordo com as indicações do treinador, para evitar que deixe de valorizar todas as qualidades que poderiam fazer dela um craque. O mais comum é que, após alguns meses, a criança cansa e, logo que consegue, pede para trocar de esporte. Adquire-se o novo uniforme esportivo, matricula-se a criança em outra escola nova; normalmente a criança cansa e pede outra vez para mudar. Essa situação, que vale principalmente para os meninos, se repete também com as meninas nos cursos de vôlei, de basquete, de dança.

E o que vale pra o esporte vale para as línguas e para as atividades artísticas, desde a pintura até o piano. O aspecto preocupante não é apenas o econômico, que concerne ao dinheiro jogado fora em apetrechos, instrumentos e matrículas, mas também o fato de que, dessa forma, muitas atividades e importantes possibilidades expressivas são recusadas pelas crianças e dificilmente poderão ser recuperadas no futuro.”

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“Em geral, valeria a pena, de qualquer maneira, que os adultos dessem um passo atrás e desistissem de solicitar que seus filhos frequentem os muitos cursinhos com funcionamento à tarde (…). As motivações dos pais são várias e aparentemente válidas; não se sabe onde deixar as crianças e a quem confiá-las; deseja-se para os filhos aquilo que se desejou para si e que não foi possível realizar devido às diversas condições econômicas e oportunidades sociais; acredita-se, de qualquer forma, que sejam atividades úteis e importantes para o futuro das crianças. A primeira motivação é compreensível: efetivamente as cidades parecem impedir que as crianças possam se encontrar e possam vivem com suficiente autonomia seu tempo livre, mas para isso valeria a pena que os pais se unissem e pressionassem seus administradores (…).

A segunda motivação é egoísta: erra-se sempre quando se consideram os filhos como próteses dos pais, próteses destinadas a dar-lhes satisfação, realizando um tipo de resgate social. A terceira motivação é errada: aquela atividade linguística, artística ou esportiva da qual a criança cansou estará perdida ; ela passará a outras atividades e, inclusive, muitas destas serão abandonadas, se perdendo para sempre. Realiza-se uma espécie de vacinação perpétua das crianças em relação àquelas atividades.”

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Lamentavelmente, para essas experiências, acontece o mesmo que acontece com demasiada frequência na escola: grande parte das propostas escolares, muitas vezes de grande importância, é recusada pelas crianças e abandonada logo que for possível. Assim acontece, por exemplo, com a leitura, e trata-se de um crime terrível para a cultura e para a própria felicidade das crianças. Valeria a pena deixar mais tempo livre às crianças para que pudessem organizar de forma autônoma seus jogos com os amigos e aguardar que sejam elas a pedir, com insistência, a matrícula em um curso para aperfeiçoar uma atividade que já experimentaram como sendo gratificante e que corresponde a suas expectativas e habilidades. Seria poupado muito dinheiro, muitas frustrações seriam evitadas e as crianças ganhariam muito tempo para dedicar ao jogo. Esta tampouco é uma garantia, mas certamente deixa mais serenas as crianças e mais tranquilos os ses pais.”

É por essas e outras que, na nossa escolinha, apostamos no tempo livre, no trabalho lúdico e no jogo espontâneo, para depois sim, pensar em esporte e competição.

Saudações esportivas, aquele abraço

This Post Has 3 Comments

  1. Rodrigo,

    Maravilhoso texto.
    Eu, que brinquei muito nas ruas,
    transitando livremente pelas casas dos vizinhos e amigos, fico triste com esta situação.
    As inevitáveis escolas e cursinhos precisam pensar em novos rumos neste sentido.
    Parabéns, Parabéns.
    bjs

  2. Um texto simples e muito atual. Realmente volta e meia somos tentados a pressionar nossos filhos por resultados em suas atividades quando, na verdade, eles precisam antes aproveitar e curtir, se desenvolver naquilo que gostam. Vou duplicar para meus amigos jornalistas esportivos.

    Valeu, Rodrigo. Grande abraço,

    de Pretoria, Ricardo.

  3. Rodrigo,

    Adorei o texto!

    Realmente, os pais devem ter muita cautela, percepção e sensibilidade para direcionar a(s) atividade(s) que o filho(a) deve fazer. É importante também, saber escolher o momento apropriado, onde a criança está "amadurecida" para executá-la.
    O mais importante é que seja algo extremamente prazeroso, para ser bem assimilado e aperfeiçoado. Dessa forma, a atividade se torna benéfica em todos os sentidos.

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