De fora da festa

Por Rodrigo Tupinamba Carvao
em 06/04/2017 |
Categorias: Sem categoria
O imaginário social do futebol produz os estereótipos e os mitos comuns às paixões humanas. O desempenho dos jogadores faz com que sejam alçados às diferentes categorias, desde o mais simplório perna-de-pau ao mais festejado e sofisticado craque. O bom e o ruim, o vencedor e o perdedor, são alcunhas que vão se colando à imagem deste ou daquele jogador e, no ambiente profissional do alto rendimento, praticamente determinam a sorte de cada um.
Uma crítica que compartilho com outros profissionais que trabalham na educação esportiva é a de que, muitas vezes, a régua para medir o desempenho de adultos profissionais chega da mesma maneira ao desporto infanto-juvenil. Digo, o imaginário social ao qual me referi acima, muitas vezes, não utiliza o filtro da infância para perceber e tratar o futebol de maneira diferente, adaptando as exigências de performance às propostas realmente pedagógicas – justamente aquelas que irão fazer a diferença para a imensa maioria dos jogadores mirins, que não irão se profissionalizar.
Recentemente o treinador Rogerio Micale, campeão olímpico de futebol pela Seleção Brasileira, deu entrevista criticando o modelo utilizado pela maioria das escolinhas de futebol, modelo que se baseia numa simples importação do treinamento adulto diretamente para o infantil, que coloca as atividades e estratégias lúdicas e pedagógicas apenas como uma franja do treinamento específico. Isto faz com que muitos aspectos sociais, afetivos e até morais, que devem estar incluídos num programa de educação (inclusive desportiva), simplesmente fiquem de fora da festa. Que festa?
A festa dos ‘bons’. Porque assim é que acaba acontecendo. Tenho recebido queixas e lamúrios de dedicados profissionais da área, plenos de bagagem, competência e experiência, bastante decepcionados com a prática da moda em muitas escolinhas, em especial em grandes clubes: o processo de seleção (!!) de alunos. 
Esta prática medonha visa, como diz o nome, selecionar aqueles mais aptos para a prática do futebol / futsal. Trocando em miúdos, a antiga peneira dos clubes para descobrir talentos, plenamente justificada pela necessidade de performance no desporto de alto rendimento (jogos oficiais dos clubes, das federações), chegou às escolinhas de futebol – local aonde, supostamente, seria de espaço para todos, os pernas-de-pau e os que levam jeito, privilegiando o convívio, o brincar de bola e as aprendizagens elementares. Num termo da área, o que chamamos de Iniciação Desportiva.
A decepção destes profissionais diz respeito tanto ao ouro de tolo que estes clubes oferecem (venda de sonhos de se tornar jogador num passe de mágica, viagens, prêmios etc); ao sentimento de exclusão que muitas crianças e adolescentes são expostos, no sentido de simplesmente não serem aceitos numa ‘escola’ (??) que só pode ensinar para os bons; e, por último, à cultura que esta prática impõe, na medida em que os pais e responsáveis, no mais legítimo anseio de agradar à meninada, passam a ter uma relação com o esporte baseada, desde cedo, num altíssimo nível de competitividade. Prato cheio para os estereótipos infanto-juvenis.
É fundamental manter a distinção entre Iniciação desportiva e desporto de rendimento. Na Iniciação, não há seleção. Esta deve ser feita para aqueles que querem se federar, jogar oficialmente, mesmo na infância e adolescência, pelos clubes que se prestam a isso. Os pais devem compreender que os trabalhos são distintos, pois a criança precisa desta distinção. O profissional de escolas e escolinhas não deve se comportar como o profissional da federação. De tal maneira que é uma grande confusão essa ideia de selecionar quem pode participar de uma escolinha. 
Chegam até a mim, aliás, casos em que esta seleção é feita às escuras, com a simples negativa em receber este ou aquele aluno (notadamente o que não leva jeito, o que tem alguma peculiaridade ou dificuldade/restrição motora, etc). Sem qualquer justificativa. “Não é não” – e estamos conversados.
Fica a sugestão: nos espaços aonde esta seleção for executada, é favor retirar o nome de “escola”. Uma escola recebe todo mundo.
Aquele abraço, saudações esportivas

Compartilhe essa história!

8 Comments

  1. Estêvão Kopschitz Xavier Bastos abril 6, 2017 at 10:19 am - Reply

    Muito bom, Rodrigo! Um abraço!

  2. Tiago abril 6, 2017 at 11:04 am - Reply

    Ótimo o texto! Perfeito o final.

  3. Murilo abril 6, 2017 at 11:04 am - Reply

    Muito bom texto, Biga, como sempre.

  4. Anônimo abril 6, 2017 at 11:05 am - Reply

    Muito bom!
    Alô, Barcelona, PSG e outras mais.

  5. Quietão abril 6, 2017 at 11:07 am - Reply

    Boa tupi!

  6. Mirian abril 6, 2017 at 3:43 pm - Reply

    Belo texto, Rodrigo

  7. Luiz abril 6, 2017 at 5:51 pm - Reply

    Excelente texto q vc enviou. Perfeito na sugestão de renomear os centros esportivos q visam lucrarem com a descoberta de futuras promessas de craques para dar rentabilidade a clubes e ou empresários.

    Acho q a peneira da vida, age naturalmente com as pessoas. Devemos estimular o crescimento individual do " perna de pau" assim como desafiar o craque a se superar.
    Qtos talentos natos ficaram no meio do caminho e quantos limitados seguiram e alcançaram o sucesso?

  8. Fred abril 11, 2017 at 10:53 am - Reply

    Palmas. Bravo.
    Nem sei por onde começar.
    Exatamente isso.
    Escola é amor. Escola é pra todos.
    Escola é o que fizeram aqueles corredores-mirins-portadores-de-síndrome-de-down que pararam uma disputa de corrida quando um concorrente tropeçou e foi ao chão. Todos socorreram o acidentado e cruzaram a linha de chegada juntos.
    Eu vejo exatamente assim: escola é para cruzar a linha de chegada juntos, de preferência de mãos dadas, como fizeram os Downs. Curiosamente, esses Downs que nos ensinaram o que é compaixão e humanidade, são os mesmos que a sociedade dita "normal" chama de "retardados". Sim, meu professor, precisamos rever conceitos com urgência.
    Pois para os Downs não existe retardo ou adianto. Não existem vencedores ou perdedores.
    Existe o "juntos", existe o "nós", existe o sucesso coletivo e gratuito, existe o acolhimento incondicional, existem metas comuns a todos, o que é, exatamente, a missão dos educadores.

    A missão dos educadores é levar a festa para todos. Todos.
    Comparo educadores a pastores: todas as ovelhas são importantes. Todas.
    Basta uma ovelha se perder para o pastor não ter cumprido sua missão.
    Existe troféu maior do que socializar um aluno perna-de-pau?
    Aprendemos com a tragédia da Chapecoense que futebol é um pretexto para melhorarmos o mundo.
    Então, sigamos teus conselhos e reflitamos sobre o significado de escola, seleção, craque e perna-de-pau.

    Obrigado por mais uma bela reflexão e belo texto.

    Forte abraço.
    F

Deixe um comentário

  • Com quem a criança se identifica hoje?

    Este é o 4o vídeo da série ‘Consuming Kids’, do […]

  • Inteligências

    Causou espanto e rebuliço, poucas semanas atrás, a entrevista do […]

  • É assim

    Caríssimos (as), Foi Camus quem falou que devia ao futebol o […]