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Enquanto os Mineiros Jogavam [Drummond]

“Domingo à tarde, na forma do antigo costume, eu ia ver os bichos do Parque Municipal (cansado de lidar com gente nos outros dias da semana), quando avistei grande multidão parada na Avenida Afonso Pena. Meu primeiro pensamento foi continuar no bonde; o segundo foi descer e perguntar as causas da aglomeração. Desci, e soube que toda aquela gente estava acompanhando, pelo telefone, o jogo dos mineiros na capital do país. Onze mineiros batiam bola no Rio de Janeiro; dois mil mineiros escutavam, em Belo Horizonte, o eco longínquo dessa bola e experimentavam uma patriótica emoção.
Quando chegou a notícia da vitória dos nossos patrícios, depois de encerrado o expediente, isto é, depois de ter terminado o segundo tempo, vi, claramente visto, chapéus de palha que subiam para o ar e não voltavam, adjetivos que se chocavam no espaço com explosões inglesas de entusiasmo, botões que se desprendiam dos paletós, lenços que palpitavam como asas, enquanto gargantas enlouqueciam e outras perdiam o dom humano da palavra. Vi tudo isso e tive, não sei se inveja, se admiração ou se espanto pelos valentes chutadores de Minas, que surraram por 4 a 3 os bravos futebolistas fluminenses.
Não posso atinar como uma bola, jogada à distância, alcance tanta repercussão no centro de Minas. Que um indivíduo se eletrize diante da bola e do jogador, quando este joga bem, é coisa de fácil compreensão. Mas contemplar, pelo fio, a parábola que a esfera de couro traça no ar, o golpe do center-half investindo contra o zagueiro, a pegada soberba deste, e extasiar-se diante desses feitos, eis o que excede de muito a minha imaginação.
Para mim, o melhor jogador do mundo, chutando fora do meu campo de visão, deixa-me frio e silencioso.
Os meus patrícios, porém, rasgaram-se anteontem de gozo, imaginando os tiros de Nariz, e sentiram na espinha o frio clássico da emoção, quando o telefone anunciou que Carlos Brant, machucando-se no joelho, deixara o combate. Alguns pensaram em comprar iodo para o herói e outros gritavam para Carazzo que não chutasse fora. A centenas de quilômetros, eles assistiam ao jogo sem pagar entrada. E havia quem reclamasse contra o juiz, acusando-o de venal. Um sujeito puxou-me o paletó, indignado, e declarou-me: “O Sr. está vendo que pouca-vergonha. Aquela penalidade de Evaristo não foi marcada.” Eu olhei para os lados, à procura de Evaristo e da penalidade: vi apenas a multidão de cabeças e de entusiasmos; e fugi.”
[Carlos Drummond de Andrade, 1931]

This Post Has One Comment

  1. Essas emoções do futebol permeiam a memória de todos, não é? Até daqueles que (como eu) dizem não torcer por time algum. Confesso assistir apenas jogos da copa do mundo, mais pelo espetáculo da competição do que pelo futebol em si.
    Aqui, sou apenas leitora anônima do Chutebol e nao fanática por futebol.
    Depois de ler essa crônica (e eu adoro crônicas) fui remetida instantaneamente à minha infância, e senti saudades das tardes na calçada do Nogueirão em dia de Potiguar e Baraúnas – que não chega aos pés do clássico narrado pelo Drummond…mas era um clássico mesmo assim.

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