Existe “A” criança?
“Na direção do bom cumprimento dessa tarefa de suprir as lacunas da criança em desenvolvimento, acostumamo-nos a buscar no conhecimento científico a medida exata de nossa ação, criando essa espécie de mito moderno da infância em que a criança aparece como ‘A’ criança. Trata-se de uma ideia abstrata construída no cruzamento do que as várias ciências puderam concluir a respeito de seu funcionamento.
O contato com as crianças passa então a ser mediada pel’A criança. Com isso supomos poder nos orientar melhor em relação a elas. Sobre esse ponto a psicanálise fará uma advertência (…). Freud dirá: ‘Não se pode ser educador se não se é capaz de participar da vida psíquica da criança, e se não as compreendemos, nós, os adultos, é porque não compreendemos nossa própria infância‘. Trata-se mais de estar com a criança do que saber sobre ela.
O que Freud quer dizer é que existe uma ignorância bem-vinda nessa relação: a da singularidade do sujeito. Há ali algo da criança que não é apreensível pelos conhecimentos sobre ‘A’ criança, e que o adulto naturalmente ignora. (…) Donde um paradoxo funesto para o educador: quanto mais aumenta esse gênero de conhecimento sobre a criança, menos apto ele está a escutar o que ela diz (…). A multiplicação dos conhecimentos sobre a criança torna o processo educativo cada vez mais complexo e de difícil operacionalidade, aprofundando, paradoxalmente, a angústia derivada da ignorância que temos da criança.
Essa multiplicação de conhecimentos, aliás, caminha a tal ponto que nos leva a evocar a também célebre anedota contada sobre a centopéia, à qual é perguntado, diante do espanto que suas múltiplas pernas causa, como ela pode saber com que perna deve dar o primeiro passo. Consta que, depois dessa pergunta, a centopéia nunca mais andou.”
[Adaptado de ‘Educação e Psicanálise’, Rinaldo Voltolini, 2011]