Histórias e temporais
“Eu dormi na escola”, contou o primeiro. “Dormiu?”, pergunta o professor. “Não, na verdade não, teve até gente que conseguiu dormir, mas eu não… fui sair de lá às cinco da manhã mas não consegui dormir”. E outro: “Eu atravessei a Jardim Botânico, que parecia um rio, na carcunda do Romero, saí até na tv!”. O professor escutava as histórias.
Alguém contou que foi dormir sem a mãe, aflito, mas ao acordar a primeira coisa que fez foi ir pro quarto dos pais e… ufa, ela estava lá! Uns ficaram presos no trânsito muito tempo, dando voltas para tentar chegar em casa; outros dormiram no hotel do clube; uns ainda deram sorte e estavam em casa quando começou o temporal. O dilúvio no Rio, além das tragédias mais graves que nos revolta e comove, deixa outras marcas.
No primeira aula seguinte à enchente foi preciso escutar, recolher os fragmentos das histórias. Contar o vivido é a busca pelo sentido no terreno do inexplicável e é, também, ao ser ouvido, adentrar a sensação de acolhimento. Logo após o aquecimento de futsal, aquela descarga inicial, os comentários do dia anterior precisavam sair do lugar de ruído para entrar no palco principal. Percebi que o primeiro exercício do dia era outro.
Os alunos estavam desejosos de contar como viveram a madrugada trágica para a cidade. Entre o espanto e algum sentimento de aventura infantil presente, palavras como medo, preocupação e tristeza vieram à tona inúmeras vezes. “Medo de o carro afundar”, “medo de não chegar em casa”, “preocupação com os pais”, “tristeza pelo que vi na tv”.
Os acontecimentos traumáticos podem ser melhor atravessados quando abrimos o espaço para a fala, para que o sujeito conte a sua própria história. Crianças também precisam – e como! – deste espaço. Ao contrário, o silêncio abre brecha para desvalorizar o ocorrido como menos importante, podendo gerar uma certa confusão psíquica e um não reconhecimento do sofrimento. As crianças precisam desta confirmação, de que é verdade o que elas viram e legítimo o que sentiram – e de nossa escuta atenta e genuinamente importada com o que relatam.
O trauma, em si, se cristaliza como tal quando o meio em que o sujeito vive nega a ele o direito de expressar, contar, sentir, enfim, tais e tais afetos. Tanto mais ele ou ela puder narrar sua história, mais vai virando isso: história. Claro, existem histórias boas e ruins, mas podem ficar no campo do elaborável, do contável.
Quando esse processo fica impossibilitado, a pessoa fica refém do acontecimento em si. Passa a não haver qualquer ilusão de controle da situação. “O que aconteceu??” vira uma pergunta insuportável, com desdobramentos ruins. O silêncio é companheiro do trauma.
Pois falamos, contamos, perguntamos uns aos outros, curiosos com as soluções de cada um e os percursos de tanta água.
Mais satisfeitos, mutuamente acolhidos e aliviados, voltamos ao solo mais seco da normalidade – e fomos jogar futebol.
Nós sempre queremos jogar futebol.
Aquele abraço, saudações esportivas
Excelente!
Muito legal esse post!
Obrigado!
Bjs.,
George
Vc escreve muito bem, Rodrigo!
Lindo! Mto importante o espaço de fala para as crianças. Foi um momento muito difícil para todos. Obrigada pela sensibilidade e acolhida.
Bjs Joyce
Amei Rodrigo!!!
Rodrigo, excelente e oportuno, como tudo o que vem de você. Muito obrigado. Alain
Rodrigo,
Parabéns pela abordagem, pontual e atemporal.
Muito contribuiu para um gap pessoal.
Obrigado.
Que linda reflexão!
Grande Tupi!
Lindo texto Rodrigo,
Assim como o Dudi, Tom e tantos outros, Matheus e eu também ficamos presos no carro no meio da cachoeira que se formou na Lopes Quintas. Matheus segurou minha mão e rezamos algumas Aves Marias…estávamos parados na frente da Divina Providência e como o nome já diz, contamos com ela.
Que bom que vcs escutaram as crianças com amor, carinho e respeito. Isso faz com que eu e Felipe estejamos mais certos que o Matheus joga num grande time. Parabéns Chutebol.
abs
Marcia Botelho
Rodrigo
Obrigada ! Vivi isso outro dia levando um projeto de arte educação para escolas publicas em áreas de risco, e percebi exatamente isso . Naquele momento elas não precisavam de nada que eu tinha preparado , elas queriam ser ouvidas . Suas histórias , sobre a mãe , o pai.. no encontro com a turma seguinte mudei tudo e fiquei escutando por um tempo tudo que ela queriam me contar ..
Um contexto completamente diferente mas lembrei da situação .
Abraço
Paula
Lindo Ro!
Valentina passou por esse perrengue também. 4 horas presa na van que inundava. Super importante seu texto e o seu trabalho. Parabéns.
Bjs,