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Muito difíceis

O trabalho de educar crianças não é nada fácil. Embora exista a possibilidade de encontros prazerosos, vínculos marcantes, atividades enriquecedoras e um imaginário bastante idealizado sobre o que seja este tipo de atividade, há também um lado árduo como em todas as profissões.

Qualquer que seja o cargo que ocupem, os profissionais lidam com todo tipo de pequenos indivíduos sob seus cuidados. Assim, em condições minimamente razoáveis, costumam encontrar uma maioria de crianças saudáveis, que demonstram receber boas condições gerais familiares e sociais. Quando utilizo o termo ‘saudáveis‘, me refiro às crianças que têm dificuldades e/ou sintomas infantis comuns, tais como: notas baixas aqui e ali, ansiedade ou apatia dentro de alguns limites, agressividade mais ou menos alta sem comprometer o grupo social, dificuldades cognitivas contornáveis, sintomas corporais idem. As subjetividades são distintas e cada um vai procurando um jeito de se enlaçar ao grupo.
Nas realidades aonde as condições de vida da população são muito precárias, costuma haver um número grande de pessoas pouco ou nada saudáveis (do ponto de vista psicossocial), o que acaba por revelar também a condição das famílias. Os lugares muito violentos e degradados expõem as pessoas, adultos e crianças, a um ambiente terrível para exercer o fazer pedagógico. O fracasso escolar/pedagógico tende a ser a norma nestes ambientes, pois as dificuldades e sintomas infantis transbordam em suas necessidades de cuidados.
Pretendo me deter, no entanto, nas condições de vida suficientemente boas, para falar dos casos em que alguém desafina o coro dos contentes: as crianças muito difíceis, que se apresentam assim, mesmo inseridas numa realidade comumente saudável.
A criança muito difícil demanda atenção praticamente o tempo todo. O estilo pode variar, digo, a maneira de fazer com que o adulto se volte para ela. Seja por fazer bagunça demais, brigar, atrapalhar os colegas, estar sempre – sempre – atrasada nas lições, tudo isso em níveis notadamente alarmantes, ela não apenas demanda, mas exige (mesmo que não seja com palavras) o olhar, os limites e a palavra do adulto. Que não pode desistir dela. Este é o meu ponto.
Se os profissionais da educação desejarem realmente ajudar uma pessoa nestas condições, é preciso, como assinalou o psicanalista Sándor Ferenczi um século atrás, uma ‘paciência quase infinita‘. São casos extremos, que pedem uma disponibilidade extrema do adulto. Esta paciência quase infinita não significa, em absoluto, fazer as vontades destes meninos e meninas aonde e como eles desejarem; mas, ao contrário, estar presente afetivamente para dar contorno às situações que ele ou ela demandarem. 
Quem pede limite exaustivamente precisa ser atendido exaustivamente. Elas não fazem isto porque querem, mas porque ainda, infantilmente, precisam, mesmo que não saibam muito bem por quê. E isto, por mais que possa não parecer, é garantia de um sofrimento interno muito grande. Um adulto infantilizado não enxerga isso, e supõe que a criança nestas condições é má.
O contorno pode ser dado com a voz, o olhar, o gestos e, principalmente, com a construção e a sustentação da relação afetiva com aquele que está em tremenda dificuldade. Para isso, o profissional que está envolvido com este tipo de aluno precisa do respaldo da instituição e de seus superiores, que não podem cobrar resultados/evolução neste tipo de caso se não acreditarem realmente em dar suporte ao profissional, compreendendo as manobras muitas vezes elásticas que precisam ser realizadas.

Os adultos também sentem raiva das crianças, pois são humanos, e esta raiva precisa ter um espaço pra ser elaborada e recebida (os superiores, as coordenações e direções), sob pena de se voltar contra a criança como revide. Sentir raiva faz parte, o revide não deveria fazer.

Resolvi tocar no assunto porque tenho percebido professores em dúvida, no seguinte sentido: se o fulaninho está insuportavel e já que ele só quer chamar a atenção, não seria melhor parar de dar bola para ele – e ver se isso não muda sua atitude? Minha intenção é encorajar os professores (e as famílias) a não fazerem isso, pois significaria desistirem destes casos. Seria lançar ao abandono e à perda da esperança este tipo de criança que tanto pede ajuda. 
Suportar‘. Este é o termo que gostaria de ressaltar. Quando, afinal, as crianças muito difíceis encontram alguma garantia externa de que serão vistas, reconhecidas, recebidas, vão aos poucos abandonando as atitudes inconvenientes e perturbadoras (para si e para os outros). Isto leva tempo e demanda o suporte que mencionei, em dois sentidos: o de aguentá-las, e o de ‘dar suporte a’. Ambos os sentidos se confundem.

Quanto mais os adultos e as instituições conseguirem suportar estas dificuldades extremas, maior será a possibilidade de alunos e alunas nestas condições avançarem.  Em avançando, o retorno para elas próprias e para a sociedade será tanto melhor, bem como sua capacidade de reproduzir, no meio social, o afeto recebido.

Uma criança em dificuldades muito grandes não precisa de revide ou abandono. Precisa de limites claros e firmes, além de outras qualidades afetivas, tantas vezes quanto forem necessários

E só poderão ajudá-las aqueles que, em algum momento de suas vidas, sentiram que já foram ajudados.

Aquele abraço, saudações esportivas

This Post Has 9 Comments

  1. Ótimo texto, Rodrigo. Realmente importante pensar e trazer a lume essa relação tão delicada e cheia de possibilidades…
    seguindo Ferenczi "sentir com"… empatia e não retaliação. Bjs

  2. Tanto os pais como os educadores, precisam também diariamente se motivarem para continuar na tarefa de condução das gerações, pois está duro nos dias de hj encontrar conteúdo que não nos façam desistir.
    Belo texto!

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