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Normais

Caros (as),
Uma pergunta tem comparecido com alguma frequência, por parte dos papais e mamães, quando vão levar e assistir seus rebentos nas aulas do Chutebol – em especial com alunos mais novinhos: “Professor, você não está achando o fulano muito desatento, não?“. É uma pergunta e tanto. No espaço de uma fração de segundo, me considero diante de um grande desafio! Explico.
No contexto atual da infância, essa tem sido uma pergunta cheia de significados. No mais das vezes, com um certo temor de alguma (suposta) dificuldade da criança estar relacionada a algum transtorno mental – notadamente o TDA/H (Transtorno do Déficit de Atenção/Hiperatividade).
Uma fração de segundo. Penso em como é mais do que legítima a preocupação (às vezes aflição) dos pais no momento da pergunta. Penso que procuro falar sempre do lugar de um observador, um professor extra-curricular que convive com a criança apenas um par de horas na semana. Mas penso também que, dependendo do olhar, é possível contribuir para ajudar meu interlocutor a pensar junto e se posicionar.
E qual o olhar em questão? Bem, o Chutebol costuma se posicionar a favor do tempo da criança como um tempo peculiar. Como a noção de um tempo categoricamente diferente do tempo do adulto – tal é o pressuposto fundamental desta conquista civilizatória a qual resolvemos chamar de infância. Assim como vejo, é sempre um grande desafio conseguir enxergar o que é uma criança explorando e se apropriando do mundo ao redor com mais ou menos vagar; com mais ou menos segurança; demandando mais ou menos do adulto cuidador; e o que é uma criança realmente em dificuldade e que entra em sofrimento, necessitando de cuidados a mais do que aqueles cotidianos.
Então, quando estamos na quadra e muitas vezes o fulaninho se desliga do jogo, ou não vai na bola como a maioria, não entendo isso a priori como um déficit. Principalmente porque, em nossa metodologia, no mais das vezes o que acontece é de a criança brincar à vontade na hora do Tempo Livre; participar dos piques e das atividades psicomotoras com desenvoltura comum; fazer os treinamentos que exigem algum desempenho com afinco; e, no jogo… no jogo… o jogo de futebol (futsal, no caso), em si, se é um momento muito aguardado para a maioria, para outros pode levar mais tempo até virar um momento realmente divertido. Porque pode acontecer de o aluno sentir que ainda não joga bem, então não confia no seu taco e aí sim, a atenção fica, digamos, escapulindo. Ele simplesmente ainda se vê pouco capaz de agir efetivamente. Então fica ali, meio viajandão. “Caramba, é uma bola só para dez jogadores…” Queria dizer que isso é comum, muito especialmente até uns 08 anos de idade mais ou menos. 
Há poucas semanas assisti a uma palestra de Rossano Cabral Lima, psiquiatra de crianças e adolescentes e Doutor em Saúde Coletiva pelo IMS (Instituto de Medicina Social)/UERJ. Foi na Sobepi, a sociedade psicanalítica da qual faço parte. Tomei a liberdade de pedir o material emprestado para publicar uma parte aqui. A palestra, sobre a medicalização na infância, contextualizava esta questão. Não se trata de crucificar ou endeusar a medicalização, mas de ter recursos tanto para criticá-la como para admiti-la. O poder e autoridade do saber médico, junto ao que ele chamou de ‘biomercado‘, são motores de um processo que, muitas vezes, simplesmente desqualifica as questões subjetivas para um determinado comportamento. Como tem sido o cotidiano do sujeito? Ele parece feliz? Como a família vive a questão da eficiência e do tempo em suas relações? É super exigente? O que a escola aponta, e como ela mesma lida com as dificuldades de cada um? O projeto pedagógico é o que a família espera de uma boa educação? Tais são questões que devem ser investigadas com real interesse e honestidade, e não desqualificadas ou vistas apenas en passant – para um destino fatal necessariamente medicamentoso de ‘cura’ (?) para um comportamento desviante.
A questão da normalidade versus patologia é uma querela interminável. Mas é muito importante sob pena de, como nos alertou o dr. Rossano, estarmos instituindo o que ele chamou com humor de Síndrome da Criança Normal (SCN). Então, atenção (!) para os informes abaixo:
“Somando as opositivas, desatentas, bipolares, hiperativas, aspergers, disruptivas, etc., ainda restariam crianças normais? (…) Qual é a concepção de normalidade que está implícita nas novas categorias psiquiátricas infantis e juvenis? Se os sintomas abaixo persistirem por mais de 06 meses, podemos estar diante da Síndrome da Criança Normal (SCN):
  1. Está sempre atento a detalhes, não cometendo erros por omissão em atividades escolares e outras;
  2. Não desacata nem recusa-se a obedecer a solicitações ou regras dos adultos;
  3. Não abandona sua cadeira em sala de aula ou outras situações nas quais se espera que permaneça sentado;
  4. Tem facilidade para organizar tarefas e atividades;
  5. Não tem problemas para manter a atenção em tarefas ou atividades lúdicas;
  6. Nunca adota um comportamento deliberadamente incomodativo;
  7. Não evita, não demonstra ojeriza nem reluta em envolver-se em tarefas que exijam esforço mental constante (como tarefas escolares ou deveres de casa);
  8. Não costuma mostrar-se suscetível ou irritar-se com facilidade;
  9. Escuta com atenção quando lhe dirigem a palavra;
  10. Não perde coisas necessárias para tarefas e atividades (brinquedos, tarefas escolares, lápis, livros ou outros materiais);
  11. Sempre consegue manter a calma;
  12. Assume seus erros, não responsabilizando os outros por seu mau comportamento;
  13. Não dá respostas precipitadas antes das perguntas terem sido completamente formuladas;
  14. Segue instruções e termina seus deveres escolares e tarefas domésticas no tempo esperado;
  15. Brinca em silêncio e não se envolve ruidosamente em atividades de lazer;
  16. Não discute com adultos;
  17. Não agita as mãos ou os pés nem se remexe na cadeira;
  18. Fala sempre na medida certa, nunca em demasia;
  19. Não apresenta esquecimento nas atividades cotidianas;
  20. Não se mostra rancoroso ou vingativo;
  21. Mantém-se atento a suas tarefas, mesmo na existência de estímulos distrativos;
  22. Aguarda a sua vez sem dificuldades;
  23. Não costuma se mostrar ‘a mil’ ou ‘a todo vapor’;
  24. Não corre ou escala em demasia, em situações impróprias;
  25. Não demonstra ressentimento ou manifesta raiva;
  26. Não apresenta irritabilidade nem se descontrola em resposta a estressores cotidianos.
A introdução dos psicofármacos, a partir da década de 1950, representou um avanço no patamar de bem-estar dos pacientes, e hoje é uma conquista incorporada ao repertório de procedimentos médicos. (…) [Mas] É preciso escapar da armadilha nosológica: nem todo problema de saúde mental infanto-juvenil se traduz num transtorno mental infantil ou juvenil. O uso dos diagnósticos e de psicofármacos não implica localizar toda a patologia na criança e esquecer do ambiente, das suas relações significativas, e da história da criança e de quem dela cuida.” [Rossano Cabral Lima]

Aquele abraço, saudações esportivas

This Post Has 13 Comments

  1. Olá Ana,

    É verdade. Muitas vezes sinto que uma 'falta de atenção' está na verdade relacionada a algo de um excesso de estímulos.

    É apenas um palpite, mas pode ser que muitas crianças tenham tantos estímulos e afazeres que, na verdade, nem sabem mais para o que olham…

    Um abraço pra vocês e viva a serra!

  2. Muito boa sua explicação, Rodrigo!

    Nesse mundo maluco e corrido, cheio de tantos compromissos e mil atividades para as crianças, os pais deveriam estar preocupadas em levar as crianças para algum lugar com muita natureza, sem nada de eletrônicos, para as crianças realmente se "desligarem".

    Vou muito pra Cachoeiras de Macacu e vejo como são diferentes e mais calmas as crianças do interior …

    Um abraço,
    Ana Cristina

  3. Rodrigo, li atentamente esses 26 itens que caracterizam a síndrome da criança normal. DUVIDEO-DÓ que algum adulto – QUALQUER adulto, aguente seis meses sem escorregar em nenhum desses quesitos!!! Então falta explicar que os fatores que descrevem a Síndrome da Criança Normal não se esgotam só nas crianças – eles descrevem também um ADULTO SUPER-NORMAL, um Super Homem como queria Nietszche – ou Hollywood. Abração. Davy.

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