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Nu, de botas

Caros (as),

2015 vai tentando entrar no ritmo – e o blog Chutebol reafirma, hoje e sempre, seu compromisso com a infância. Afinal, como costumamos lembrar modestamente, ela não é um dado biológico, mas uma construção sócio-cultural. Quer dizer: para existir a infância, é preciso sustentá-la!

E não há jeito melhor para isso do que quando os adultos podem lembrar-se, entrar em contato com seus tempos de criança. Nos melhores casos, um tempo dilatado, próprio, com um ritmo singular entre medos, paixões, frustrações, alegrias e delícias. A foto acima capta um close do José Veloso, nosso aluno (foto da Tereza Gonzales, mãe do Bento e do Caetano!); o Zé nos presenteou, no último Natal, com o livro ‘Nu, de botas‘, de Antonio Prata (valeu, mamãe Clara!).

Tudo isso pra dizer que o livro é uma graça, com recortes da infância do autor e um olhar profundo a partir de suas próprias experiências. Do ponto de vista da criança. Por isso, a foto acima. Por isso, também, reproduzimos aqui uma pequena passagem que, para quem pode lembrar com carinho de sua infância, há de se reconhecer – e ajudar a preservá-la. Boa leitura!

“(…) Pai e mãe me beijavam, apagavam a luz: o mundo desaparecia. Como ter certeza de que voltaria a existir? De que os dois não sumiriam no breu? Que garantia tinha de que não seria levado pelos monstros que, vez ou outra, apareciam nos pesadelos – eu, que ainda não sabia o que eram monstros ou pesadelos? Já havia atravessado outras noites, mas não tantas para sabê-las indubitavelmente intransponíveis.(A experiência, para mim, ainda estava em fase experimental.) Para cruzar as trevas, precisava de garantias, lembretes de outras viagens.

Ouvir uma história conhecida: o mesmo enredo e, apesar de todas as dificuldades enfrentadas pelo herói, o mesmo desfecho nos esperando, lá no fim. Seu êxito repetido me sugeria a continuidade das coisas. Assim como ele, eu já tinha enfrentado o iminente fim do mundo e depois acordado – tudo haveria de dar certo.

Música de ninar: os barulhos, mesma matéria-prima do susto, agora domesticados. Ritmo: fiador da continuidade, um, dois, manhã, noite, três, quatro, noite, manhã. Rima: parentesco entre palavras; balão, mão; ladrilhar, passar; preta, careta.

Nada me deixava mais tranquilo, contudo do que os sons da máquina de escrever vindos do quarto ao lado. Era meu pai, escritor, que trabalhava depois que todos haviam ido dormir. O batuque do teclado, o ronco grave do rolo girando com o papel e a sineta do carro tilintando ao ser devolvido à posição inicial – plim! – me garantiam a presença de um adulto, ali ao lado: se não ao alcance das mãos, ao menos dos ouvidos. O ritmo caótico, mas contínuo – como chuva no telhado -, era ainda melhor do que a música de ninar, cadenciada, pois sugeria que mesmo em meio à confusão poderia haver harmonia. Sob esse cafuné auditivo o mundo desaparecia, sem violência, depois voltava a existir, quando eu menos esperasse, iluminado: plim! (…)”

[Adaptado de ‘Nu, de botas‘ – Antonio Prata, 2013]

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