O Maraca é nosso?

Por Rodrigo Tupinamba Carvao
em 29/04/2013 |
Categorias: Sem categoria

Caríssimos,

Nesta postagem, uma entrevista com Bernardo Buarque de Hollanda, autor de estudos sobre futebol na cultura brasileira, que nos ajuda a compreender o que se passa nesta nova era das ‘arenas’, aqueles estádios padrão-Fifa para receber eventos internacionais. 
Por Pedro Sprejer
Professor-pesquisador do Centro de Pesquisa e Documentação da Fundação Getúlio Vargas e autor de estudos sobre o futebol na cultura brasileira, o historiador Bernardo Borges Buarque de Hollanda criou o termo “estádio-nação” para definir um modelo monumental de arena que materializou um desejo nacional de grandiosidade, integração e modernidade. Em entrevista ao GLOBO, ele analisa o esgotamento desse padrão e outros temas, como a gênese das torcidas organizadas.

Você cita a Arena da Baixada, estádio do Atlético Paranaense inaugurado em 1999, como a primeira expressão no Brasil de um novo modelo internacional de estádio, surgido a partir dos anos 90. O novo Maracanã e o Itaquerão parecem se basear nas mesmas concepções. Que modelo é esse e como ele está associado a uma nova economia do futebol? 


É o modelo de estádio inglês, criado com a Premier League. Um exemplo emblemático: em 1993, o Liverpool pôs fim no seu estádio ao setor atrás do gol onde se situavam os torcedores mais fervorosos, reduto dos hooligans. Este local, desvalorizado pela precariedade do ângulo de visão, era o preferido dos jovens proletários britânicos. Era um espaço aberto, no qual se podia transitar livremente. Nos anos 1990, uma cirurgia arquitetônica instaurou os all-seater, isto é, uma nova concepção de plateia esportiva. Esta compartimenta as tribunas e atomiza os torcedores nas áreas internas das arenas esportivas, de modo a inibir a liberdade de circulação. Com isto, induz-se o torcedor a assistir sentado às partidas, segundo um paradigma de conforto, segurança e individualidade definido como positivo pelos gestores do futebol. 

Com capacidade de público reduzida, áreas vip e megatelões de ponta, o novo Maracanã parece diferir de aspectos da concepção original do estádio, na década de 40, como o caráter monumental da construção e a capacidade de reunir uma massa formada por classes sociais heterogêneas. Tais fatores perderam relevância no momento histórico atual? 


Para entendermos a nova acepção social do torcedor de estádio, é preciso entender a presença crescente de outro personagem: o telespectador. A televisão tornou prescindível o modelo de estádio paradigmático dos anos 1950, aquilo que chamo de “estádio-nação”. O critério de grandeza era predefinido pela capacidade de afluência do público, principal fonte de renda do futebol até os anos 1980. Para dar um exemplo: na final da Copa do Mundo de 1950, 10% da população carioca compareceram ao Maracanã. À medida que o telespectador se torna mais importante que o torcedor, não há mais razão para estádios de grande porte. A inversão é simples: menos lugares, valores mais altos. Os ingressos a R$ 60 levam a uma espécie de asfixia das classes menos favorecidas economicamente, que tendem a ver o jogo em casa ou nos bares. A tendência, portanto, é a seguinte: o futebol continuará um esporte televisivo popular no Brasil, ao passo que seus estádios sofrerão um processo de homogeneização, com a frequência preponderante da classe média. 


A analogia entre um show de rock e um jogo com astros do futebol é feita pelos que justificam que o estádio deve ser para quem pode pagar mais pelo espetáculo. Na sua opinião, a torcida pode ser vista apenas como plateia, ou é parte indissociável do espetáculo? 


A analogia parece apropriada, mas também vale acionar as imagens do estádio-teatro e do estádio-shopping. A torcida é a participação contínua ao longo do jogo. Não se trata de uma espera, mas de uma ação continuada, que se quer interventiva. A diferença fundamental entre a atividade da plateia esportiva e a passividade da plateia teatral foi o que fez Bertolt Brecht encantar-se com o boxe na Alemanha dos anos 1920. Ter o público como ator, e não como mero espectador, levou-o a elogiar a modernidade dos espetáculos esportivos. Mas por mais que seja constatada a tendência a elitizar, atomizar e individualizar a experiência de torcer nos estádios, é sempre possível subverter, recriar e carnavalizar as formas estandardizadas. 


Você descreve, em suas pesquisas, como as torcidas organizadas cariocas se configuram, nos anos 40, a partir da incorporação de elementos dos desfiles das escolas de samba, como animação, música, uniformização e organização. A partir de quando a violência se tornou elemento constante nas organizadas? 


Não se deve cair na armadilha de contrapor um passado idílico — supostamente pacífico — a um presente exclusivamente violento. Os distúrbios estão presentes nas praças de futebol desde seu surgimento, no início do século XX. Nos idos de 1920, um cronista referia-se a “arremedos de guerrilha”, ensaiados por torcedores rivais. Havia brigas dentro e fora dos estádios. Durante a pesquisa, o mais surpreendente foi descobrir que as organizadas foram criadas nos anos 1940 justamente para enquadrar e disciplinar o comportamento “desviante” dos torcedores nas arquibancadas. O chefe da torcida era o auxiliar do chefe da polícia. Havia o medo generalizado com a multidão e com a conduta do indivíduo no anonimato de estádios cada vez mais agigantados. Este sentido disciplinador das torcidas foi alterado ao longo dos anos 1970, quando estas se desmembraram em mais de uma associação de torcedores por clube. 


Há um novo modelo de torcidas organizadas surgindo? 


Os “movimentos” de torcedores, que surgiram no Rio em 2007, em contraponto às Torcidas Jovens, canalizaram boa parte da insatisfação com o modelo vigente de torcidas organizadas e procuram reatar o elo originário com o clube. São, em parte, congruentes com as transformações em curso na gestão do futebol e na remodelagem dos estádios, mas não estão imunes, com o tempo, a vivenciar as mesmas contradições: crescimento, aumento de poder, conflitos internos e apelos por dissidências. 

[O Globo, 27/4/2013]

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