Por que as crianças brincam?

Por Rodrigo Tupinamba Carvao
em 10/09/2016 |
Categorias: Sem categoria
Ao longo do século XX muitos pesquisadores e estudiosos, notadamente dos campos da pedagogia e da psicologia, terminaram por consagrar a importância da brincadeira para o bom desenvolvimento da criança. Este discurso, felizmente, perdura até os dias atuais, muito embora hoje existam questões relativas ao tempo, ao espaço, ao mundo virtual e a outros aspectos que influenciam e/ou transformam o brincar infantil.

Diante da quantidade de informações disponíveis hoje, os adultos sabem que brincar faz bem e podem enumerar muitas das benesses advindas desta atividade. Compreendemos o que se pode alcançar aí em termos de saúde física, psíquica e social. Mas essa é a linguagem dos adultos. As crianças não pensam em nada disso enquanto se divertem (se alguém for ficar pensando não se entrega à atividade). Como não adianta forçar ninguém a brincar, cabe então perguntar: afinal, o que as move? Por que as crianças brincam?

[Escapou…]

As crianças brincam porque brincar é uma necessidade. A partir do difícil processo de distanciamento parental e familiar que nos empurra a encarar a realidade mais ampla da vida, somos confrontados com medos muito profundos. O mundo em si pode ser percebido como um grande vazio sem a presença física das referências parentais (mãe, pai, cuidadores substitutos). Esta realidade mais ampla, como chamei, é vivida por cada um de uma maneira. Não existe uma realidade objetiva pura, mas uma realidade objetiva compartilhada e aceita como tal pela maioria das pessoas. Está estabelecido aí um paradoxo: compartilhamos um mundo real formado, paradoxalmente, por realidades subjetivas diferentes. Trocando em miúdos, cada um vê e vive o mundo à sua maneira, mesmo aceitando que uma cadeira é uma cadeira.

A brincadeira é uma necessidade tão profunda que é a partir dela que a criança consegue criar e manipular a realidade a seu favor, encenando angústias e afetos e obtendo, na fantasia, o controle do vasto mundo em que foi lançada – agora muitas vezes sem a presença dos pais. Toda criança tem questões e dúvidas muito pertinentes acerca da vida e do seu entorno, mesmo que à primeira vista não as verbalize. As clássicas encenações de brincar de comidinha, de luta, de monstro, do que quer que seja, fazem parte do repertório infantil na legítima tentativa de manter algum controle sobre a realidade, que já não é aquela (oh, dor!) de quando era o centro total das atenções familiares. Poder fazer de conta que está no papel da mamãe amada enquanto ela não se apresenta vira um bálsamo para tanta saudade.

As brincadeiras vão se tornando mais complexas com o passar do tempo e, se tudo correr razoavelmente bem, o sujeito vai curtindo mais esta ou aquela fantasia que é, por assim dizer, sua própria maneira de estar no mundo: super-herói, princesa, lutador, moleca, esportista, etc. Muitos se mostram tão apegados a algum personagem relacionado à brincadeira preferida que, efetivamente, passam a se mostrar e viver assim no cotidiano. O mais importante, no entanto, não é a efetivação deste ou daquele personagem, mas o anteparo que a brincadeira proporciona – já funcionando em seu mundo psíquico – frente às durezas da vida.

A possibilidade de criar seu próprio mundo entrelaçado à realidade comum é fonte de confiança, criatividade e dá sentido às dores do viver infantil. Importante perceber que, nessa criação pessoal, não se trata de um mundo desvinculado daquele vivido pelas outras pessoas (o que seria patológico se levado a um extremo); mas sim um entre, uma licença poética que não exclui subjetividade nem objetividade, mas as comunga. A brincadeira é um paradoxo necessário.

Na elaboração das questões e emoções que a vivência do lúdico provoca, também é encontrado prazer. Eis aí uma segunda resposta à pergunta inicial. Brincar é prazeroso – porque criar o é. Preenche uma vontade de potência que, não sendo mais a onipotência do bebê, já se articula de outro modo com a realidade. Se por vezes a brincadeira é interrompida, fica chata ou alguém se aborrece, apenas confirma o fato de que ela não se sustenta sem o apoio da realidade – as frustrações também ocorrem ali. Os jogos de enfrentamento (como o futebol, por exemplo), já são elaborações muito complexas e que supõem uma capacidade maior de arriscar-se ao sucesso ou fracasso. Criar uma jogada e fazer um gol proporcionam sensações indescritíveis; levar um drible desconcertante e falhar, também.

Nos dias atuais percebe-se uma preocupação dos adultos com as possibilidades diminutas das atividades lúdicas e dos jogos que envolvam os movimentos mais amplos (correr, pular, saltar, jogar). Por conta, como já foi dito, das agendas lotadas, dos espaços apertados da cidade grande, da avalanche virtual. Me parece uma preocupação legítima e eu a compartilho, dado que brincar está intimamente relacionado a fazer. Tudo isso influi na saúde psicomotora da pessoa, pois a confiança genuína em si passa também pelo domínio razoável dos movimentos fundamentais do próprio corpo e de uma relação prazerosa com ele.

Brincar não é pensar, embora não se deixe de pensar enquanto se está brincando. Quero dizer com isso que não se trata de uma atividade essencialmente intelectual. Muitas crianças aliás, com dificuldades de se apropriar da brincadeira pelo receio em serem espontâneas, se refugiam nas atividades intelectuais sendo até mesmo admiradas por isso, porém em detrimento de um enriquecimento emocional que certamente lhes fará falta em outros momentos da vida.

De qualquer maneira, as crianças sempre irão brincar. Como e em quais condições, cabe aos adultos ficarem atentos, dado o conhecimento já existente sobre esta atividade essencial. Até porque já fomos crianças e, se puxarmos o fio da meada, podemos encontrar relação entre nossas brincadeiras preferidas, nossa personalidade e mesmo atividade profissional em muitos casos.

Por fim preciso dizer que tudo isto que escrevi já é, digamos, de domínio público, estando presente nas obras colossais dos psicanalistas Sigmund Freud e Donald Winnicott, além dos psicomotricistas Andre Lapierre e Bernard Aucouturrier. Outros autores contemporâneos também têm ótimo material, mas os clássicos são referência. Minha intenção foi apenas tecer um comentário mais informal sobre o assunto, que encontra respaldo em minha própria experiência profissional.

Jogar futebol é antes de tudo, na infância, brincar. Espero ter escrito algo proveitoso.

Aquele abraço, saudações esportivas

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11 Comments

  1. Claudia Gomes setembro 15, 2016 at 10:33 am - Reply

    Super proveitoso, como sempre! Parabéns

  2. Davy Bogomoletz setembro 16, 2016 at 2:55 pm - Reply

    Excelente, Rodrigo.
    Abração.

  3. Rodrigo Tupinambá Carvão setembro 16, 2016 at 2:56 pm - Reply

    Valeu, pessoal! =)

  4. Anônimo setembro 16, 2016 at 3:10 pm - Reply

    Rodrigo,

    Confesso que não sabia NADA a seu respeito ou em relação ao projeto. Fiquei muito positivamente impressionada!!! Achei incríveis sua formação e seus textos!

  5. Presi setembro 16, 2016 at 9:11 pm - Reply

    Bom texto tupa!
    Parabéns

  6. Luis setembro 18, 2016 at 9:04 pm - Reply

    Gostei muito pois vem ao encontro no que acredito e tento levar para meus filhos. Parabéns mais uma vez por essa sacada.

  7. Juliana Marçal setembro 19, 2016 at 11:29 am - Reply

    Muito proveitoso!
    Obrigada

  8. Rodrigo Tupinambá Carvão setembro 19, 2016 at 11:38 am - Reply

    =)

  9. TÂNIA VELOZO setembro 19, 2016 at 11:00 pm - Reply

    Maravilha Rodrigo! Excelente texto!!

  10. TÂNIA VELOZO setembro 19, 2016 at 11:01 pm - Reply

    Maravilha Rodrigo! Excelente texto!!

  11. Rodrigo Tupinambá Carvão setembro 19, 2016 at 11:53 pm - Reply

    Valeu!

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