Estávamos reunidos, professores e alunos, para uma semifinal de campeonato, na Copa do Mundo de Futsal – a Copinha -, uma espécie de intercolegial que jogamos há mais de uma década. Professores e alunos, podemos dizer, transformados em comissão técnica e jogadores, dada a fantasia inerente à competição. Era o momento da preleção, aonde ratificamos estratégias, ideias de jogo, e muitas vezes abordamos algum tema que sirva como inspiração. Essa história aconteceu há alguns anos, mas me pareceu pertinente contá-la agora.
Me deu um branco. Não aquele branco das antigas e aterrorizantes provas de vestibular, aonde a gente esquecia as fórmulas matemáticas; mas uma confusão se estabeleceu na minha cabeça – o que eu teria a dizer para os jogadores de tão importante? As posições, as estratégias, os pontos fortes e fracos (nossos e do adversário), tudo isso me pareceu menor, menos importante diante do momento especial que estávamos vivendo. Quando embarcamos num campeonato, é preciso viver a fantasia junto com eles. Mas o que eu iria dizer?
Me dei alguns segundos de silêncio. Vislumbrei o semblante de cada um. Escutei o burburinho da torcida. Milésimos de segundos de um pequeno transe sensorial que me aguçou os sentidos.
“Por que vocês estão aqui?”, perguntei. Pequeno silêncio, tímidos balbucios como retorno. “Aliás, por que nós estamos aqui?”, insisti. Surgiram pequenas tentativas, mais ou menos clichês vindos dos adultos como “vamos vencer”, “pra jogar com raça”, etc. Nada disso me convenceu.
Eu sentia o time pesado. O adversário era tecnicamente melhor do que nós, tinha feito melhor campanha – e nós havíamos chegado aos trancos e barrancos, com méritos, mas sem navegar na segurança de ser o melhor time da competição.
Os dois últimos parágrafos, que duraram alguns segundos nessa pequena história, ajudaram a me reorientar – senti que eu havia feito a pergunta certa. “Vou ajudar vocês”, prossegui. “Antes de tudo isso que vocês responderam, vencer, jogar com raça, que é o que nós desejamos fazer, existe um por quê maior de estarmos aqui, hoje. Vocês estão aqui porque vocês adoram jogar futebol.” Senti um imediato alívio nas feições e nos ombros dos pequenos jogadores. Nos meus, inclusive.
Entendo, hoje, que eu tinha feito uma descoberta: era preciso recuperar o sentido das coisas. Continuei, lembrando a eles que eu também era apaixonado futebol, e que era uma profissão escolhida por mim. E pude dizer que a torcida, na verdade, eram familiares apoiando, demonstrando toda confiança e carinho por eles.
“Então, meus amigos, finalizei (preleção longa é insuportável), tirem esse peso excessivo dos ombros. Isso é medo de perder. Estamos todos aqui pelo nosso próprio desejo, pelo prazer de jogar. Arrisquem-se ao jogo! Poderíamos estar na praia, no cinema, em casa, mas não. Todos nós escolhemos estar aqui, agora. E jogo bom é esse, pegado, decisivo. Isso é o filé mignon do esporte. Sejam bem-vindos, aproveitem e deem o melhor de si: por vocês mesmos, por suas famílias, por amor ao futebol.” Percebi uma aceitação desta minha ideia. Muitos lembraram de seu percurso até ali. E partimos para o aquecimento com bola. Depois cheguei no pé de alguns ouvidos e confirmei algumas estratégias para a partida, enquanto aqueciam.
O futebol brasileiro, desde as divisões de base, tem sofrido com uma postura mesquinha diante do esporte. Quaisquer que sejam as razões (e são tantas que não caberia aqui enumerá-las), o fato é que a derrota passou a ser algo inaceitável, com a qual se convive muito mal. Um monstro na verdade, a ser evitado a qualquer custo, inclusive com violência.
Fora do âmbito profissional, aonde se joga necessariamente por dinheiro, é preciso recuperar o sentido maior do jogo (faria bem a muitos profissionais, também). Por quê, afinal, jogamos? Se a resposta rápida for ‘para vencer’, então a derrota fica realmente sem espaço, sequer na imaginação. Inadmissível, dado que se joga, antes de qualquer outra coisa, pela obrigação de vencer – acredito, inclusive, que a relação estereotipada com a derrota atrapalhou o Brasil na trágica Copa do Mundo de 2014. Se, ao contrário, o sentido maior for ‘porque gostamos muito de futebol’, então abre-se a brecha para o imponderável: o resultado da partida.
São duas maneiras muito distintas de viver o esporte, com norte morais e éticos diferentes, levando também a formações e atitudes diferentes. Preciso dizer ainda que não há qualquer romantismo na ideia que apresento, dado que o prazer em jogar futebol não pode ser, por definição, contrário à vontade de ganhar uma partida ou um campeonato.
Jogamos porque gostamos. Simples assim. Aceitamos os riscos de jogar, dado que o prazer de jogar é maior do que a dor de qualquer resultado. Dor, aliás, que é proporcional ao tamanho do amor que se sente pelo esporte. Mas a dor passa.
Ah, a equipe da história? A foto acima fala por si. Não pela preleção, mas eles cumpriram os papéis direitinho e acabaram campeões. Poderiam não ter sido, não há garantias. Mas, assim como eu, descobriram que poderiam jogar por algo mais importante – e mais gostoso – do que a penosa e monótona obrigação de vencer. Futebol é bom à beça!
Aquele abraço, saudações esportivas
Lindo texto! Parabéns!
Beleza, Rodrigo. Beleza pura. Meus parabéns por esse insight, o mais antigo de todos, mas lembrá-lo na final do campeonato deu a ele um ar de NOVIDADE SUPREMA. Me lembrei agora a crônica que você escreveu a respeito do Barça, tantas vezes campeão, mas que jogava, por instrução explícita do técnico, porque os jogadores adoravam jogar.
Enorme abraço, grande amigo.
Perfeito Tupi! Concordo plenamente! Parabéns!!!
Muito bacana seu texto! Confirma toda a sensibilidade da pessoa e profissional que você é! A Educação física merece profissionais como você! Parabéns pela sua entrega, pela sua paixão e pelas vitórias de todos os dias!