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Pós-trauma

Caros (as),
Um ano exato se completou, dias atrás, do vexame da Seleção contra a Alemanha na Copa do Mundo de 2014. Eu, que estava na arquibancada do Mineirão e nunca vi sequer um gol daquele jogo pela TV, pretendo rever o jogo. Não faltaram, na imprensa em geral, matérias, comentários e toda sorte de referências a esta hecatombe futebolística – certamente com o bálsamo da distância que permite, nos melhores casos, ao menos visões mais complexas do que aquelas em momento de agonia. Mas o Chutebol vai dar um pitaco também, como deu à época. 

Me parece que a ideia não é ficar tentando explicar o inexplicável dos 7 a 1 em si, dado que este é o fato incontestável: um banho de bola, uma lavada, uma roda de bobos etc etc etc. As comparações entre as sociedades me pareceram bastante cabíveis (‘não é só no futebol que a Alemanha dá de 7 na gente’, li em muitos lugares); e o evidente despreparo da Seleção como um todo, de cima a baixo e de baixo a cima, para levar uma enfiada daquelas. Ok.
Bem, o mundo não acabou e nem deve acabar por conta de um desastre desportivo. Mas, dentro deste universo profundo que é o futebol, que move bilhões de pessoas, bilhões de dólares e turbilhões de emoção, vale pensar esse rolo todo como um pós-trauma. Vou tentar fazer um ponto.
Gosto da metáfora de Vargas Llosa: “O futebol é o ideal de uma sociedade perfeita: poucas regras claras, simples, que garantem a liberdade e a igualdade dentro do campo, com a garantia do espaço para a competência individual“. Bem sabemos que da teoria para a prática vai um abismo, particularmente no caso brasileiro. Mas, se efetivamente puxarmos o fio da meada do futebol como metáfora válida de uma determinada cultura (se o futebol for reconhecidamente relevante ali), podemos fazer mais do que condenar os condenados de sempre. A História já se encarregou destes. Inclusive se encarregará dos patifes da CBF que foram presos. Gostaria de falar de outro lugar.
O trabalho com crianças é um campo privilegiado para observar como elas percebem o futebol em sua cultura mais ampla. E o que tenho visto é que, especialmente após a Copa de 2014, e podendo acompanhar os grandes times europeus pela TV, a molecada brasileira está (re?) aprendendo a admirar o futebol para além dos resultados. Digo: suponho que se encaminha um retorno à ideia de que é preciso jogar bem. É digno, é honroso, é estético. Dá orgulho. As crianças e os adolescentes hoje em dia, com tanta informação, acompanham algo que os comandos do futebol brasileiro (clubes, federações) ainda não conseguem resolver: como voltar a apresentar um bom padrão geral de futebol? Como fugir à imposição de resultados desde as categorias de base? Não por acaso perguntamos no dia fatídico, aqui no blog: afinal, o que se espera de um jogador brasileiro?
Noutro dia eu soube de mais um jogo infanto-juvenil, entre dois clubes grandes da Federação de Futsal do Rio de Janeiro, que acabou em pancadaria. Pancadaria, vias de fato. Porrada, perdoem. Profissionais da área, atletas e mais: a torcida junto. Torcida? Pais e familiares da arquibancada. Pasmem. Isso não é sintoma? É ingenuidade pensar que pode ter sido coisa do jogo, do juiz, um ponto fora da curva. Nada disso. É comum.
Estou tentando dizer que a cultura do resultado, excessivamente pragmática, cumpre papel fundamental na crise do futebol brasileiro. Pois é falsa a seguinte questão: ‘formar para jogar bem’ versus ‘formar para vencer’. Nada mais falso. Ilógico, até. Como é incorreta a ideia de que um time feito para jogar no contra-ataque (que adote uma postura mais defensiva) pratique necessariamente um jogo feio ou covarde. Depende da postura de seus jogadores em campo. Mas isso é outro papo.
Não vou me alongar. Mas a ânsia pelo resultado a qualquer custo é sintoma de um modo de pensar e jogar que não consegue lidar com a incerteza. Se não pode lidar com a angústia da incerteza (me refiro à imprevisibilidade do resultado final da partida) é porque não confia em si e no seu jogo. Se não confia em si, só resta como ataque não a bola, mas o menosprezo ao adversário, que passa a ser visto como inimigo a ser destruído. Perder é insuportável. Vale tudo, absolutamente tudo, pela suposta garantia da vitória, como se tal garantia fosse possível. E seguimos nós, formando pequenos jogadores que, ao se tornarem atletas profissionais, em sua maioria pensam que podem ganhar na marra, na ‘vontade’ ou na corrente de oração. Porque estão muito pouco preparados para jogar futebol e lidar com toda sorte de percalços das partidas e dos certames.
Isso não é mudado num passe de mágica, mas o indicativo que mencionei, o da exigência da qualidade antes do resultado, é mais que bem-vindo. Porque influencia a cultura, o modo de se assistir, cobrar, jogar. Aponta na direção de uma preparação mais profunda e consistente. É preciso se apresentar bem. Como são bem-vindas as ações do Bom Senso FC em relação às finanças dos clubes, calendário das competições, etc – e muito saudadas as prisões de dirigentes corruptos. Quiçá uma liga de clubes no lugar da CBF.
Se o que estou falando faz algum sentido, as próximas gerações, cascudas depois da traulitada que a Alemanha nos impôs, talvez consigam fazer outras escolhas, na medida em que o público vai ficando mais exigente. A elaboração do trauma, isso já se sabe, é exatamente a busca de um sentido, na tentativa de não repetir o indesejável acontecido. 
Aquele abraço, saudações esportivas

This Post Has 3 Comments

  1. Concordo em rever posturas e aprender q nada vem d graça. Precisamos nos disciplinar e disciplinar.
    A ética está em baixa, mas eu diria q é "o molho" p conseguir gds resultados.
    E MT MT treino!!! É claro.
    Abc

  2. Rodrigo,

    Muito bacana a sua análise, ainda mais pelo fato de você ter assistido o jogo de verdade, digo, no estádio.
    Concordo com tudo que você falou.

    Futebol, Copa do Mundo, essa Copa no Brasil e este se texto são assuntos muito bacanas e intermináveis para conversarmos.

    Tenho dezenas e dezenas de ingressos de jogos que eu fui, entre eles Brasil x Argentina, no Delle Alpi, na Copa de 90, e os de 2014, Argentina x Bósnia, Espanha x Chile, Brasil x Chile e, Alemanha x Argentina, a final.

    Tem as despedidas de Raul, do Roberto Dinamite, rodadas duplas no Maraca…

    Quem sabe um dia a gente não marca um papo de torcedor?

    Continue sempre escrevendo no seu blog. São análises muito bacanas!

    Grande abraço
    Maurício

  3. Muito bom, Rodrigo. Já vi que você é um filósofo do futebol, como Nelson Rodrigues, Ari Barroso e tantos outros. Concordo inteiramente com o que você disse.
    Abração.

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