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Posição de alma

Caros (as),
Vem da sensibilidade feminina a ideia para escrever esse texto. Conversando com as meninas da turma sobre o posicionamento em quadra, uma delas sugeriu: “Fulana não consegue jogar atrás porque a posição de alma dela é na frente“. Virou um jargão na turma feminina. Convenhamos, o nome é muito bom!

[Brasil 2 x 0 Uruguai, 1993 – Romário marcou os dois]
Parece interessante escrever sobre o assunto. Como na maioria das coisas do futebol, à primeira vista pode ser encarado como algo menor, desimportante, um capricho retórico. Mas, convencido que estou da importância das coisas desimportantes, tomei como mais um destes pequenos grandes temas que o futebol nos instiga. Vejamos.
Existe uma técnica básica de jogo: como receber a bola, como dominá-la, como conduzir, passar e chutar (há ainda as técnicas específicas de goleiro). Na teoria, esta técnica (o jeito de fazer) se aplica a todos os jogadores e jogadoras. No jogo real, no entanto, cada um consegue uma maneira de se apropriar dela. Dito de outro modo, cada pessoa tem um jeito de jogar.
Uma discussão antiga na Educação Física é sobre técnica versus estilo. Me lembro que, quando criança e ainda na adolescência, o extraclasse Romário era demolidor de pranchetas e teorias. Com sua célebre frase, “Treinar pra quê?“, o Baixinho fazia troça dos manuais: metia gol de bico, não recuava para marcar, não gostava de treinar e, no entanto, mais do que uma técnica refinada, exibia nos campos a magia que encantava multidões: Romário cultivava um estilo. Eu estava no Maracanã no célebre Brasil x Uruguai, em 1993, no jogo decisivo pelas Eliminatórias da Copa do Mundo de 94 – e mal acreditava no que meus olhos viam. 
Daí surgiam querelas que hoje, como entendo, importam pouco ou quase nada: Romário jogaria ainda melhor se treinasse? Romário seria Romário se treinasse? Romário tem técnica ou estilo? Engraçado é que, quando se é aluno de alguma faculdade, ainda verde, temos a pretensão de solucionar todos os desafios teóricos. Hoje, após duas décadas trabalhando com futebol, confesso que desdenho de muitas destas questões. Me importa mais usufruir do talento de um craque e sustentar o paradoxo. Os paradoxos estão aí para serem tolerados, não resolvidos. Romário mal treinava ‘e’ era um craque. Não ‘mas’. Voltando à vaca fria: ele tinha uma posição de alma. E que alma! De artilheiro.
E com quem está aprendendo, acontece o mesmo? Creio que sim, mas com ressalvas. Vamos devagar, um Romário não surge assim toda hora (nossa Seleção que o diga). Um gênio desta grandeza se impõe naturalmente. Trazendo a questão para o universo pedagógico, cada um, como escrevi, vai se apropriando da técnica de jogo à sua maneira. Aos poucos vai expressando com mais vigor sua personalidade: aquele que tem gana de defender, o que é obcecado por fazer gols, o solidário, o que gosta de preencher todos os espaços do campo, o passador generoso, o fominha individualista e por aí vai…
Ao repararmos direitinho, a maneira de jogar, como “descobrimos” na turma feminina aonde esse tema surgiu, traz alguma coisa real da personalidade da pessoa como ela é – e não só no campo! Cabe perguntar: mas o treinador/professor não vai ficar então refém destas coisas? 
Creio que não é o caso. A partir do momento em que o(a) jogador(a) já encontrou espaço para expressar sua singularidade jogando bola e consegue usufruir de um ambiente no qual esteja à vontade, poderá aos poucos contribuir de maneiras distintas com os colegas e a equipe. Pode até mesmo mudar sua maneira de jogar quando, por exemplo, seu jeito de ser e/ou suas vontades não encontram eco numa técnica razoável para exercer uma determinada função. Aí o que cabe ao treinador é o diálogo, a possibilidade de experimentar, a disponibilidade do aluno em aprender, estas coisas que dizem da maturidade de um e de outro. Combinar sua personalidade com o meio social no qual você se encontra é uma habilidade e tanto! Mais ainda, sem perder sua singularidade, digo: identificar-se com um grupo sem abrir mão de sua própria identidade. No caso de crianças e adolescentes tudo isso depende de um entendimento por parte dos pais, também. Muitas vezes o pai cisma de ver o filho jogando de uma única maneira e até atrapalha a aprendizagem. Ou, ao contrário, quando não se conforma ao ver o filhote escolhendo por gosto uma posição. É preciso confiança no processo.

Mas uma coisa é certa: quando se consegue encontrar – e expressar – a posição de alma no campo de jogo, a sensação é de estar no lugar certo, fazendo a coisa certa. Tudo flui mais fácil, o vento sopra a favor e a batata fica menos quente. Além da alma e do estilo, talvez estejamos falando de um atributo puramente humano: o lugar aonde encontramos prazer.
*Obrigado, Patrícia, pela inspiração.
Aquele abraço, saudações esportivas

This Post Has 6 Comments

  1. Oi Fred,

    Rapaz, foi algo espetacular, concordo com tua definição: ali era o auge.

    Me lembro de beliscar meu amigo , tipo "Caraca, o que está acontecendo??!!"

    Ao vivo, no campo, o Romário foi o maior que eu vi.

    Até porque o Zicão eu vi muito pouquinho =)

  2. Caraca, Rodrigo. Vc estava lá?
    Para mim, esse Brasil X Uruguai, de 1993, foi um dos jogos mais importantes da seleção brasileira, junto com o 2a3, para a Itália, em 1982.
    Ali era o auge da dupla Bebeto-Romário.
    Um jogo que me marcou profundamente e que revi, recentemente.
    Poderia ter sido uns 4a0 só com gols de Romário…
    O cara fez milagres nesse dia. Deu aula de futebol. Só não fez chover.
    Romário e Rivelino foram os maiores jogadores brasileiros que já vi jogar, principalmente porque coroaram suas genialidades com a conquista de Campeonatos Mundiais.

    Abs,
    F

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