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Questão de confiança

Prezados (as),

Muitas vezes, quando o telefone toca, do outro lado da linha está uma mãe – ou um pai – querendo informações sobre a escolinha de futebol para o filhote. Conversa vai, conversa vem, quando, afinal, o interlocutor expõe um pequeno drama: “Sabe o que é, professor? É que o Zezinho não é bom. Já tentou nos clubes x, y, z. Desistiu. Mas eu sinto que ele tem vontade de jogar“. Se impõe um pequeno silêncio. Procuro então, no mais das vezes, explicar a proposta de trabalho, a aposta na brincadeira e na socialização como motores para uma aprendizagem efetiva. O assunto dá uma descontraída, marcamos uma aula de experiência, a ligação termina. Mas eu continuo pensando.

O que faz alguém se sentir bom em alguma coisa? À primeira vista, consigo pensar nos resultados que apresentamos, nós adultos, em nossas atividades cotidianas – notadamente o trabalho. Como atividade humana carregada de simbolismo, o trabalho é uma das grandes fontes que empresta sentido às nossas vidas. De tal maneira que não deve ser difícil, para a maioria de nós, perceber que, até que tenhamos nos sentido bons naquilo que fazemos, foi preciso ter percorrido uma estrada bastante longa. 
No entanto, o tempo percorrido em si não é garantia alguma de progresso. Evidente que deve haver, em condições normais de temperatura e pressão, uma tendência à evolução em algum sentido. Mas essa tendência só será confirmada se, em tal tempo, for possível ocorrer um amadurecimento do sujeito naquela atividade. Um amadurecimento amplo: intelectual, psíquico, social, além das habilidades gerais e específicas requeridas no metiê.
Pois bem, se este amadurecimento é uma função do tempo, ele remete àquilo que foi vivido, experimentado pelo sujeito: erros e acertos, sensação de sucesso e fracasso, processos de pensamento, desafios diversos. Após uma certa quantidade destas experiências, como sabemos, é possível adquirir alguma segurança naquilo que se faz. Sentimos que não é preciso desabar quando alguma coisa dá errado. Assim, se o que estou falando faz algum sentido, esta sensação de segurança – que nos permite seguir em frente mesmo em meio a mares turbulentos – é tributária de um sentimento muito profundo amadurecido ao longo do tempo: a confiança. Vou tentar voltar ao menino da história.
Desistir de fazer uma atividade por não ser bom soa bastante cruel para quem ainda está começando a longa série de dificuldades que a vida comum nos impõe; digo, na criança da história acima – e estou falando de inúmeros casos parecidos – a desistência demonstra uma insegurança em se apresentar com sua singularidade, sua maneira de jogar. Ou seja, ele gosta de jogar, mas as experiências se configuraram como fracasso para o pequeno jogador abatido. E por quê?

Bem, evidente que há casos e casos, histórias de vidas distintas – mas diante da média dos discursos que nos chegam, me permito afirmar: porque não foi permitido ao aluno brincar de bola. Efetivamente, na maioria destes casos, não houve um espaço-tempo garantido para que o gosto por jogar bola fosse mais importante do que o desempenho no futebol. São duas coisas distintas.

Quando digo isso, não me refiro à falta de encorajamento por parte dos pais ou do professor/treinador; ou ao fato de não ter sido apresentado o jogo de futebol em si. Mas à impossibilidade real de o aluno experimentar os primórdios do esporte, que é o jogo em seu estado lúdico, pouco ou nada competitivo. Para isto são necessárias algumas estratégias; um planejamento que contemple o brincar como elemento fundamental de aprendizagem; e, é claro, uma busca (por parte do professor) pela compreensão das necessidades e dos estágios de desenvolvimento da criança. Tudo isso muitas vezes está presente nos discursos de pais e professores mas, na prática, na verdade não chega assim para o aluno. A ideia de desempenho, consciente ou inconscientemente, é a que prevalece como ponto de partida. Aí, para muitos meninos e meninas, não dá pé.

As atividades lúdicas são precisamente aquelas que convidam o sujeito ao movimento livre, espontâneo. É neste espaço-tempo que o aluno pode, aos poucos, sentir uma maior intimidade com seu próprio corpo – a ponto de arriscar movimentos diversos, destrambelhados e ir percebendo ele mesmo as melhores alternativas para fugir num pique, para saltar um obstáculo, para desviar de um colega. De quebra, a socialização vai se dando em bases que a criança pode se reconhecer: fazer amigos, resolver pequenos desentendimentos, expressar suas emoções, questionar e ser questionado pelo professor. A brincadeira proporciona um ambiente aberto a tudo isto e, neste caldeirão, vai se dando o sentimento de pertença ao grupo. De poder ver e ser visto em sua singularidade, já que na brincadeira não precisa ser bom, basta entrar na onda e se divertir. Sim, vai ter gente com dificuldade até pra isso, mas aí é um assunto que não cabe aqui, agora.

É então, a partir do acúmulo destas experiências em um ambiente convidativo, que a criança vai podendo se mostrar, se expôr ao risco de jogar, com uma segurança mínima para se haver razoavelmente com erros e acertos. Por já ter sido dada a ela a oportunidade de… ser como ela é. O brincar permite a expressão mais legítima de si mesmo. Tal é o que facilita às crianças adquirirem e sustentarem a tal da confiança, por ajudar na construção de uma imagem de si suficientemente boa. Percebam: suficientemente boa. Boa o bastante para conseguir brincar com os amigos; em seguida, para se arriscar ao futebol em si, que exigirá desempenho gradativo, à sua maneira.

Ao contrário, ser apresentado ao futebol (ou qualquer outro esporte) pela via do desempenho gera a fatal comparação: “Diante disso, não sou bom“. Noves fora, claro, aqueles que já têm facilidade no desporto por diversos motivos (família de atletas, talento nato, etc). São minoria.

Quem joga bola, sabe: confiança é tudo – e não é só dentro de campo.

Aquele abraço, saudações esportivas

This Post Has 11 Comments

  1. Sempre muito boas suas colocações Rodrigo! O imediatismo de hoje é tanto que crianças já devem nascer prontas! E o nível de competição instalado em certas escolinhas, lógico que existe demanda para isso ou não estariam cheias, faz com que as crianças que querem se divertir desistam de tentar aprender pq "não são boas"!

    Abs, Andréa mãe do João Wakigawa

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