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Ruim de bola

Prezados (as),
A cena não é incomum: mamãe chega com o rebento pela mão, ele parece meio desengonçado. Se desgarra dela, dá um pique na direção dos outros jogadores, vai chutar a bola. A mãe chama o professor em tom de cochicho na beira da quadra – como só a elas é reservado o direito de fazer nestas horas. O professor não é bobo, então ele obedece, dá dois passos pra trás e escuta: “Preciso falar com você um minutinho, sabe o que é? Estou achando o Zezinho muito desajeitado. Ele é meio ruim de bola, o que eu faço?” Pausa.
Penso que, num país como o Brasil, acaba que o futebol é um meio bastante apropriado para facilitar a socialização da criança, com seus grupos e valores, amigos e uma ética comum aos boleiros. Ninguém – ainda bem – está obrigado a jogar futebol para encontrar um sentimento de pertença mas, se os amigos todos jogam, às vezes fica difícil não embarcar. E aí?
Aí que ninguém é bobo. Muito menos a criança. Depende um pouco da idade mas, na média, consigo afirmar que eles já têm, na maior parte dos casos, um termômetro pessoal que indica o nível que cada um joga. É claro que, como os adultos, há os extremos: aquele que acha que joga muito mas não joga nada (ou não tanto assim); e aquele que se subestima, diz ou acha que joga pouco mas, na verdade, faz um belo feijão com arroz (como dizem os boleiros). Costumo ficar especialmente atento à maneira como a criança ou o adolescente consegue se mostrar, se mais ou menos extrovertido, mais ou menos confiante. Se demonstra seu desajeito dando caneladas a torto e a direito ou, ao contrário, fica retraído e desconfiado. 
Mas o ponto é o seguinte: a criança, na maioria das vezes, sabe quando não joga bem. Ou não tão bem. Ou não tão bem quanto o craque da turma. Daí que não cabe ao adulto mascarar isso, ou apresentar o horripilante e politicamente correto “aqui todo mundo é igual“. Não, não é e eles sabem disso. Da parte do professor, acredito que o fundamental é conseguir manejar um grupo. Apresentar questões que sejam percebidas como verdadeiras. Pois, não nos enganemos, meninos e meninas podem ser bem cruéis. Quando admito que as pessoas, os jogadores não são iguais, que uns jogam melhor que outros, isto não significa evidentemente atribuir, deliberadamente, etiquetas de ‘bons’ e ‘ruins’. Não é disso que se trata, nem de simplesmente abandonar o grupo à própria sorte para que apontem uns para os outros com as tais etiquetas. O importante é ajudá-los a trabalhar com a ideia da diferença. Explico.
É preciso compreender o menino bom de bola. É chato quando você toca de primeira e recebe de volta sempre um passe ruim, um caroço, como dizemos. Legal é receber de volta a pelota amaciada, com açúcar e com afeto. No entanto, a pergunta-chave que precisa flutuar no grupo e pode ser trabalhada é: só os bons jogam? Só os craques podem jogar? Existe alguma regra que enuncia isso? Nos times profissionais pelos quais torcemos, todos os jogadores são craques? A grande maioria admite tais questões como verdadeiras. Um time é formado por jogadores diferentes. Como trabalhar isso para que não acabe apenas como uma monótona imposição pedagógica?
É aí que entra em cena o menino ruim de bola, aquele a quem antigamente chamavam ‘pereba’. Gosto da ideia de ajudá-lo, em primeiro lugar, a encontrar uma maneira de contribuir com os colegas. Logo de cara é necessário admitir as dificuldades. Abrir o espaço para que a falha, os erros se mostrem e sejam encarados – e comentados – com desassombro e naturalidade. O jogador fica muitas vezes aliviado por poder se mostrar como é e o que (não) sabe. Não é necessário nem educado, muito menos pedagógico, chamar o sujeito de ‘ruim’, mas normalmente este conceito se refere à baixa habilidade do jogador. Ora, quantos jogadores profissionais, mesmo sem grande habilidade, não se fazem notar por outros atributos como a valentia, o bom posicionamento, a inteligência, a solidariedade dentro de quadra? Inúmeros. Isto também é reconhecido como legítimo pela molecada que joga futebol. 
Logo, aliado ao próprio ensino da técnica e da tática desportivas, é preciso ajudar o sujeito a se situar e a contribuir de alguma maneira – enquanto o ganho das habilidades ainda não amadureceu. O lugar de ‘menos habilidoso’ é diferente do lugar de ‘ruim’. É preciso apostar no desejo de melhorar. É a partir daí que tal tarefa se torna um projeto do próprio sujeito e que ele poderá, com uma humildade que não é submissão, realizar um esforço genuíno para contribuir com a equipe. Enxergo nisso um valor moral.
Por outro lado, num efeito de círculo virtuoso, quando os colegas, que deram um crédito ao fulaninho com a ajuda do professor, veem seu esforço, normalmente começam a dar aquela força. Vai daí que o outrora ruim de bola aprende a jogar em alguma posição específica na quadra, ganha confiança. Começa a poder encarar suas dificuldades com mais humor, daqui a pouco está rindo, depois de uma partida, da própria furada. Muitas vezes abraçado ao craque da turma (que também pode furar, não nos esqueçamos). Aí os ganhos do treinamento vão começando a se estabilizar, aparece uma habilidade aqui, outra acolá, faz até um golzinho vez por outra. Quando se atinge este ponto, normalmente é que o trabalho está dando resultado. O bom humor é indicativo da saúde emocional do grupo. Este muitas vezes toma para si as dificuldades de um dos seus – e compra o barulho. É muito legal ver um grupo ajudando alguém com dificuldades. E, não raro, o antigo pereba se torna bom jogador, se a ele for dada essa chance. Conversando com a molecada sobre isso, recentemente, alguém tido hoje como bom lembrou: “Quando eu comecei a jogar, tinha medo da bola, é até engraçado…”
Abrir o jogo é condição essencial do processo. É reconhecer aquilo que as pessoas veem. Senão ficam os não-ditos, aquele ramerrame, um melindre. E aí ninguém mostra o seu melhor, pois há uma tendência a ficar defendido quando a verdade não é o que prevalece. Ao contrário, quando tudo fica às claras, dá gosto ver o craque do time dando força ao perna-de-pau, inclusive a contar com o suor dele para vencer uma partida. Advém daí a aprendizagem que, numa abordagem que camufle as diferenças ou as estigmatize, não seria possível: o que fazer, como me coloco diante do mais frágil
A ideia é reconhecer a diferença. Soa como um imperativo ético de nosso tempo.
Aquele abraço, saudações esportivas

This Post Has 4 Comments

  1. Se não fosse as aulas na Escola de FutSal não teria ocorrido tamanha evolução apenas nas quadras jogando com amigos.
    Tenho jogado bola com ele há anos e pude observar o domínio de bola evoluindo assim como a qualidade dos passes.

    Parabéns para vcs professores pacientes.

    Abraço

  2. E aí, quando damos conta o nossos meninos estão nos surpreendendo, Parabéns a esta dupla de Professores envolvido com a causa de Educar através do esporte!

  3. Arrasou! Dar a cada um a oportunidade de assumir suas fraquezas, aceitar e trabalhar em cima delas é não só bom como totalmente necessário. Não só nas quadras, mas na vida mesmo.
    Mais um belo texto com uma visão que só você sabe colocar em palavras!
    Beijocas!

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