Tempo livre
No cotidiano das aulas, faz parte da metodologia do Chutebol o que resolvemos chamar simplesmente de ‘tempo livre’. Como diz o nome, é um momento no qual não há uma atividade diretiva em si, carregando a ideia de que seja, de fato, livre. Cabem, no entanto, algumas considerações.
A ideia de liberdade só funciona se o sujeito em questão (no caso as crianças, a turma) responder a alguém ou a alguma coisa. Digo, ‘liberdade’, do ponto de vista moral, social e psíquico, não significa apenas fazer o que se quer sem qualquer restrição. Tal comportamento estaria muito mais associado a uma situação caótica, incidindo em sentimentos como abandono, insegurança e mesmo violência.
O imperativo ético ao qual alunos e alunas precisam responder, em nossas aulas, são três regras fundamentais exigidas, a saber: 1. Cuidar de si; 2. Cuidar dos amigos; 3. Cuidar do material. Estes são imperativos simples, claros e ao alcance da compreensão infantil (mas não só) e que, aos professores, permite remeter qualquer dificuldade não só no tempo livre, mas em todas as partes da aula e do ano.
Esta é a maneira pela qual buscamos o guarda-chuva de uma Lei comum a todos (professores inclusos), e que responsabiliza cada um (adultos e crianças) por seus atos. A responsabilidade pessoal, sabemos, é a fatura da possibilidade de usufruir da liberdade possível em seu meio social.
Com este solo mais firme, a proposta funciona como um estímulo potente para o desejo, a criatividade e o amadurecimento psicomotor e social dos alunos (em especial na infância) – por apostar na liberdade de movimentos, de escolhas, de pares.
A literatura especializada aponta para os ganhos de tônus muscular, equilíbrio, coordenação motora ampla e lateralidade, na medida em que o improviso dos movimentos impulsiona a plasticidade neuromuscular e, em bom carioquês, uma certa sagacidade necessária em meio às atividades espontâneas que se instalam naquele pequeno grande universo.
Neste sentido, a espontaneidade é, também, um reconhecido fator fundamental no desenvolvimento infantil, pois a partir dela é possível construir relações sociais mais verdadeiras.
Não importa que, muitas vezes, as crianças tenham necessidade de repetir brincadeiras e pares, pois ainda assim sentem que estão criando e manejando seu próprio universo e, neste sentido, brincar é criar que é viver. Elas precisam disso para se assegurar de sua maneira pessoal de estar no mundo e garantir um sentimento de potência.
Outro aspecto fundamental é que, além de funcionar como aquecimento divertido para as atividades desportivas específicas, durante o tempo livre há uma negociação, mais ou menos velada – por vezes expressa e com a ajuda de um juiz, qual seja o professor(a) – acerca da utilização do espaço, pois muitas atividades ocorrem ao mesmo tempo e de maneira bastante caótica para quem vê de fora.
Esta negociação implica um registro ético de tolerância ao espaço do outro mas, também, de buscar garantir o seu e o de seus amigos. Dividir uma quadra de futsal sem definições estritas do adulto é árduo exercício de convivência e tolerância mútua. É a socialização em seu sentido mais profundo.
Importante ressaltar que muitas crianças podem não encarar bem o tempo livre. Isto só corrobora a teoria na qual a liberdade é uma conquista, e precisa ser amadurecida junto a um sentimento de confiança em si.
Quando um aluno ou aluna rejeita essa atividade e não se lança por temer aquela espécie de bagunça arrumada, cabe ao professor fazer a ponte e transmitir a segurança necessária que precisará ser construída entre ambos; criança-professor, até que a primeira possa dispensá-lo para interagir com as outras crianças.
O tempo livre parece, assim, uma representação da vida social mais ampla, com seus desacertos, trombadas, falhas e improvisos mas, em amadurecendo, também pode ser lugar para usufruir de alegria, amizades, potência e, afinal, liberdade. No corpo.
Aquele abraço, saudações esportivas
Prezado Rodrigo.
Curiosamente, somente hoje fui ler este artigo sobre o “tempo livre”.
Achei Sensacional! Parabéns, eu jamais havia percebido toda a riqueza desse momento, e inclusive me remeteu à minha infância, e as experiências similares então vividas, especialmente no recreio da escola.
Grande abraço