Wisnik: Por quê o futebol?
Caríssimos,
O blog Chutebol traz belo texto, do multi pensador José Miguel Wisnik, sobre a singularidade do futebol e seu alcance na sociedade. Wisnik, que é músico, compositor, ensaísta e professor de literatura brasileira, percorre com extrema categoria a complexidade da trama social em que o futebol está inserido – e apresenta argumentos para justificar tamanha identificação deste esporte com bilhões no planeta. Boa leitura!
“(…) O futebol inglês, o soccer, pela singularidade da sua formulação, abre-se, mais do que os demais esportes, a uma margem narrativa que admite o épico, o dramático, o trágico, o lírico, o cômico, o paródico. Nele, o tempo da competição é mais distendido, alargado e contínuo do que no futebol americano, no vôlei, no basquete ou no tênis. A margem flutuante de acontecimentos que não se contabilizam, mas que são inerentes à trama continuada da partida, constitui-se, nele, numa sobra significativa que amplia o alcance de seus efeitos (para não dizer de seus conteúdos, que são difusos e indeterminados, como na música).
Não quero dizer que outros esportes sejam desinteressantes – muito ao contrário. Mas é que neles, em geral, há um foco mais cerrado sobre cada momento contábil, em que se traduz em números ou em ganho de território o embate frontal de performances e competências. No beisebol, no futebol americano, no vôlei, no basquete, no tênis, temos uma série de alternâncias de ataques e defesas, de confrontos repicados, individuais ou coletivos, que vão varrendo exaustivamente acertos e erros e sinalizando-os em posições e números. No futebol, temos uma sequência contínua e inumerável de alternativas em que o avanço numérico é um acontecimento entre outros, que se destaca de um magma de possibilidades não cumpridas, de um vai-e-vem de lances falhados ou belos em si.
(…) É isso que faz o soccer desinteressante ou incompreensível, acho eu, para a maioria dos norte-americanos: ele não se presta a uma demonstração cabal e serial de competência, e não se estrutura como uma bateria de provas decisivas de performance. Para o resto do mundo, por sua vez, essa faixa de gratuidade estrutural, essa margem improdutiva inerente ao ritmos do jogo, esse resíduo pré-moderno incluído na competição – elementos que a diversificam sem chegar a afrouxá-la – permitiram identificar o futebol com a vida, e acabaram por fazer dele um campo hospitaleiro ao diálogo polêmico e não verbal entre populações do mundo inteiro. O futebol é uma língua geral que acontece numa zona limiar entre tempos culturais que se entremeiam.
(…) Foi nessa brecha, também, que o futebol foi assimilado e resinificado no Brasil, onde se ocupou com galhardia a sobra de desocupação estrutural que o jogo oferecia, fazendo-o coletivo e individualista, pragmático e artístico, útil e inútil, surpreendente e belo, carnavalesco e trágico. Essas qualidades foram, aliás, reconhecidas em toda parte, sem prejuízo das contradições e paradoxos que ele abriga (…).”
[Adaptado de ‘Veneno Remédio – O futebol e o Brasil‘, José Miguel Winsik, 2008]
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Arrasou, Rodrigo! Trazer esse trecho do Wisnick pro blog foi e é muito legal!
Abs
Bebeto
Muito bom, né?
Valeu, grande abraço!
Gostei da "margem improdutiva"! Ninguém me engana: quanto mais um padrão de cultura global exigir produtividade em tudo, mais as pessoas vão se encantar com as coisas que sustentam (com o maior orgulho, sem o menor ressentimento) suas margens improdutivas! Viva o futebol e suas marginalidades!
Hippies de RayBan.
Isso aí Rayban, ótima colocação!
abs
Esse livro é muito bom. A primeira parte ele disseca todos os objetos do futebol e na segunda parte fala sobre a historia da selecao brasileira.
abs
Rodrigo, para mim, Wisnick é que é show de bola na música, na literatura e em tudo que faz.