Antiautoajuda

Por Rodrigo Tupinamba Carvao
em 31/03/2015 |
Categorias: Sem categoria
Caríssimos,

O material que apresentamos abaixo chega um pouco atrasado, talvez mesmo pelo tempo necessário para digeri-lo. Eliane Brum (jornalista, escritora e documentarista), na última virada do ano, escreveu no El País esta espécie de texto-desabafo. Um desabafo do qual compartilhamos, em especial pela maneira acelerada e anestesiada com que nós adultos temos apresentado a vida à infância. No entanto, como insistimos, esta necessita de tempo – até para que possa entrar em contato com seu próprio mal-estar, para que possa aprender a escutá-lo e a conviver com ele quando necessário. Já é sabido: ser criança não significa ter infância.


A íntegra do texto está em: 

Boa leitura!

(…) Quando as pessoas dizem que se sentem mal, que é cada vez mais difícil levantar da cama pela manhã, que passam o dia com raiva ou com vontade de chorar, que sofrem com ansiedade e que à noite têm dificuldade para dormir, não me parece que essas pessoas estão doentes ou expressam qualquer tipo de anomalia. Ao contrário. Neste mundo, sentir-se mal pode ser um sinal claro de excelente saúde mental. Quem está feliz e saltitante como um carneiro de desenho animado é que talvez tenha sérios problemas. É com estes que deveria soar uma sirene e por estes que os psiquiatras maníacos por medicação deveriam se mobilizar, disparando não pílulas, mas joelhaços como os do Analista de Bagé, do tipo “acorda e se liga”. (…)

Olho ao redor e não todos, mas quase, usam algum tipo de medicamento psíquico. Para dormir, para acordar, para ficar menos ansioso, para chorar menos, para conseguir trabalhar, para ser “produtivo”. “Para dar conta” é uma expressão usual. Mas será que temos de dar conta do que não é possível dar conta? Será que somos obrigados a nos submeter a uma vida que vaza e a uma lógica que nos coisifica porque nos deixamos coisificar? Será que não dar conta é justamente o que precisa ser escutado, é nossa porção ainda viva gritando que algo está muito errado no nosso cotidiano de zumbi? E que é preciso romper e não se adequar a um tempo cada vez mais acelerado e a uma vida não humana, pela qual nos arrastamos com nossos olhos mortos, consumindo pílulas de regulação do humor e engolindo diagnósticos de patologias cada vez mais mirabolantes? E consumindo e engolindo produtos e imagens, produtos e imagens, produtos e imagens?
A resposta não está dada. Se estivesse, não seria uma resposta, mas um dogma. Mas, se a resposta é uma construção de cada um, talvez nesse momento seja também uma construção coletiva, na medida em que parece ser um fenômeno de massa. Ou, para os que medem tudo pela inscrição na saúde, uma das marcas da nossa época, estaríamos diante de uma pandemia de mal-estar. Quero aqui defender o mal-estar. Não como se ele fosse um vírus, um alienígena, um algo que não deveria estar ali, e portanto tornar-se-ia imperativo silenciá-lo. Defendo o mal-estar – o seu, o meu, o nosso – como aquilo que desde as cavernas nos mantém vivos e fez do homo sapiens uma espécie altamente adaptada – ainda que destrutiva e, nos últimos séculos, também autodestrutiva. É o mal-estar que nos diz que algo está errado e é preciso se mover. Não como um gesto fácil, um preceito de autoajuda, mas como uma troca de posição, o que custa, demora e exige os nossos melhores esforços. Exige que, pela manhã, a gente não apenas acorde, mas desperte.

Anos atrás eu escreveria, como escrevi algumas vezes, que o mal-estar desta época, que me parece diferente do mal-estar de outras épocas históricas, se dá por várias razões relacionadas à modernidade e a suas criações concretas e simbólicas. Se dá inclusive por suas ilusões de potência e fantasias de superação de limites. Mas em especial pela nossa redução de pessoas a consumidores, pela subjugação de nossos corpos – e almas – ao mercado e pela danação de viver num tempo acelerado.

(…) Hoje me parece que algo novo se impõe, intimamente relacionado a tudo isso, mas que empresta uma concretude esmagadora e um sentido de urgência exponencial a todas as questões da existência. E, apenas nesse sentido, algo fascinante. A mudança climática, um fato ainda muito mais explícito na mente de cientistas e ambientalistas do que da sociedade em geral é esse algo. A evidência de que aquele que possivelmente seja o maior desafio de toda a história humana ainda não tenha se tornado a preocupação maior do que se chama de “cidadão comum” é não uma mostra de sua insignificância na vida cotidiana, mas uma prova de sua enormidade na vida cotidiana. É tão grande que nos tornamos cegos e surdos.

(…) De certo modo, na acepção popular do termo “clima”, referindo-se ao estado de espírito de um grupo ou pessoa, há também uma “mudança climática”. Mesmo que a maioria não consiga nomear o mal-estar, desconfio que a fera sem nome abra seus olhos dentro de nós nas noites escuras, como o restante dos pesadelos que só temos quando acordados. Há esse bicho que ainda nos habita que pressente, mesmo que tenha medo de sentir no nível mais consciente e siga empurrando o que o apavora para dentro, num esforço quase comovente por ignorância e anestesia. E a maior prova, de novo, é a enormidade da negação, inclusive pelo doping por drogas compradas em farmácias e “autorizadas” pelo médico, a grande autoridade desse curioso momento em que o que é doença está invertido.

(…) Nessa época de tanta conexão, em que a maioria passa quase todo o tempo de vigília conectado na internet, há essa desconexão mortífera com a realidade do planeta – e de si. (…) Neste e em vários sentidos, é como existir no “modo avião” do celular. Um estar pela metade, o suficiente apenas para cumprir o mínimo e não se desligar por completo. Um contato sem contato, um toque que não toca nem se deixa tocar. Um viver sem vida.

É preciso sentir o mal-estar. Sentir mesmo – e não silenciá-lo das mais variadas maneiras, inclusive com medicação. Ou, como diz a pensadora americana Donna Haraway: ‘É preciso viver com terror e alegria’.

Só o mal-estar pode nos salvar.

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3 Comments

  1. Davy Bogomoletz março 31, 2015 at 10:48 pm - Reply

    Rodrigo, estou de pleno acordo com você. Temo, só, que quando todos "acordarem" será tarde demais. No quadro de avisos na portaria do meu prédio apareceu hoje um folheto alertando as pessoas para o perigo da Dengue e daquela outra doença (parecida, mas pior) que eu nem sei como se diz o seu nome. Li aquilo, e fui para o elevador me perguntando quantos moradores (são muitos) olharam o folheto, e quantos realmente o consideraram importante. Não sei. Só sei que as medidas de proteção recomendadas ali só terão eficácia se TODOS as seguirem. Basta que UM vizinho deixe de lado a precaução para que muitos sejam infectados. E agora? Então, VIVA O MAL ESTAR!!! Só ele nos salvará.
    Abraços.
    Davy.

  2. Rodrigo Tupinambá Carvão abril 1, 2015 at 11:32 am - Reply

    Pois é Davy, acho que calar o mal-estar é calar a própria vida…
    Grande abraço!

  3. Leana abril 1, 2015 at 2:58 pm - Reply

    EXATAMENTE!

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