Quanto tempo o tempo tem? (2)

Por Rodrigo Tupinamba Carvao
em 25/02/2013 |
Categorias: Sem categoria
Nesta segunda postagem sobre o tempo, a psicanalista Maria Rita Kehl viaja até Monteiro Lobato para discutir como tais questões chegam à infância. Fica a ideia de que é preciso posicionar-se diante de questões aparentemente banais, mas que repercutem seriamente na vida familiar e da criança. Boa leitura!
“Talvez seja necessário recuperar as lembranças das tardes de tédio, daquelas que só acontecem na infância, para entender o que ocorre com o psiquismo (…) na ausência de estímulos que solicitem o trabalho do sistema pré-consciente.
As fantasias mais fabulosas de algumas histórias infantis de Monteiro Lobato ocorrem a seus personagens em momentos de completa inatividade, quando Pedrinho e Narizinho não têm mais nada a fazer a não ser desenhar ‘XXX’ com o dedo nas almofadas de veludo da sala do sítio – brincadeira que os dois primos chamam, apropriadamente, de ‘exercício de parar de pensar‘.
Não há comparação entre a experiência do tempo ocioso, tão comum no cotidiano das crianças que podiam ficar entregues a si mesmas nos períodos não ocupados pelas obrigações escolares, e a vivência do tempo agendado de manhã à noite que caracteriza o cotidiano das crianças contemporâneas como um permanente treino para a futura competição pelo mercado de trabalho.
Não é de espantar que tais crianças se angustiem nos fins de semana e suportem tão mal a falta de atividades divertidas, que se traduzem em formas de ocupação integral do tempo ocioso. Também não é de espantar que, nas circunstâncias em que os pais se veem impedidos de inventar programas para ocupar o tempo livre de seus filhos, estes se dediquem sem trégua a essa nova modalidade de treinamento da velocidade do arco reflexo, em curto-circuitos de estímulo-resposta propostos pelos excitantes videogames
E que, na ausência deste tipo de estimulação, essas crianças de agenda cheia manifestem uma irritabilidade e uma inapetência para o mundo que faz lembrar os sintomas da depressão – manifestações de inquietação e desconforto psíquicos que levam muitas famílias a medicar suas crianças, seja como deprimidas, seja como hiperativas.
Nos livros de Monteiro Lobato, o ócio dos personagens infantis convoca a avó a contar suas longas histórias na varanda do sítio, um pouquinho a cada fim de dia, fazendo do período de férias um delicioso encadeamento de noites mágicas e dias de aventuras. ‘Quanto mais o ouvinte se esquece de si mesmo, mais profundamente se grava nele o que é ouvido, escreve Walter Benjamin em seu conhecido ensaio sobre ‘O narrador‘.
Benjamin refere-se, nessa passagem, à íntima relação entre a fruição distendida do tempo, a função das narrativas e a transmissão da experiência. O tempo lento e distendido, em que nada acontece nem está para acontecer, permite aos que escutam histórias uma receptividade descontraída, condição para que as narrativas se incorporem ao vivido na qualidade de experiência transmitida.”
[Adaptado de ‘O tempo e o cão‘, Maria Rita Kehl, 2009]

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8 Comments

  1. Gisele fevereiro 26, 2013 at 10:46 pm - Reply

    Ola Rodrigo !
    Mt bom o texto !
    Me reportei a epoca em que eu assisitia O SITIO e amava as estorias que alimentavam minha imaginacao,,,
    Momentos de tamanha entrega e construcao neste tempo de nao cumprir tarefas e apenas SER ,,, imaginar , respirar e saborear o ocio criativo !
    Um investimento convidar nossos pequenos e a nos , usufruirmos deste tempo interno, organico ,,,
    obrigada
    compartilhei no meu facebook
    bj

  2. Rodrigo Tupinambá Carvão fevereiro 26, 2013 at 10:47 pm - Reply

    Oi Gisele,

    É verdade, muito bom né? A Maria Rita Kehl é ótima!
    Pois é, parece que até o ócio hoje deve ser 'produtivo', e isso é muito chato, ruim, perverso mesmo…

  3. Patricia fevereiro 27, 2013 at 11:57 pm - Reply

    Mais uma bola dentro!
    bjs
    Patricia

  4. Gysa março 4, 2013 at 10:51 pm - Reply

    Há quanto tempo eu quero comentar esse post (na verdade desde o primeiro dessa série)!
    Mas eu fiquei sem tempo esses dias…engraçado, né? Fiquei sem tempo de pensar no tempo.
    Agora sobrou o tempo que eu queria.
    Tempo com calma…tempo pra sentir.
    Lembrei da música do Caetano, aí reservei um tempo pra ouvir…pra nada, só ouvir.
    "O que usaremos pra isso/ fica guardado em sigilo/apenas contigo e comigo…"
    Gosto de usar meu tempo aqui!
    Xero,

  5. Rodrigo Tupinambá Carvão março 4, 2013 at 11:00 pm - Reply

    Oi Gysa!
    Caetano é sempre bem-vindo, né?

    Que bom que você gosta de usar teu (precioso) tempo por aqui…

    Um beijão!

  6. UM SOBREVIVENTE março 5, 2013 at 6:53 pm - Reply

    Excelente. É o ritual da banalização da ritalina, a falta completa de cuidado com distinguir os distúrbios psíquicos da inadequação da criança de hoje com o volume de responsabilidade que é outorgado a ela. Uma escola que não estimula a criança e mais um milhão de atividades linguísticas ou esportivas que, de tão impregnadas da obrigação, se distanciam cada vez mais do lúdico… é mais fácil rotular a criança de TDAH do que perceber o anacronismo do ensino, a crueldade que é trocar infância por "inserção precoce em mercado de trabalho"…

  7. Rodrigo Tupinambá Carvão março 5, 2013 at 6:57 pm - Reply

    Pois é João, me parece que nosso tempo, assim, fica empacotado, digo, é preciso se posicionar e afirmar limites.
    O lúdico acaba sendo visto como 'perda de tempo'. Curioso, não?

    Grande abraço!

  8. Anônimo março 5, 2013 at 7:19 pm - Reply

    Rodrigo, confio demais em vc e sempre falo do privilegio que eh ter o Theo sendo acompanhado por seu olhar tão afetuoso e atento!

    Muito obrigada mais uma vez!!

    Karina.

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