Repetições
Trabalhando com crianças, muitas vezes somos surpreendidos com os pedidos delas por esta ou aquela atividade, esta ou aquela brincadeira que, mesmo já tendo sido feita repetidas vezes, é demandada (até exigida) novamente.
Isto pode colocar o professor em dúvida, na medida em que – nos melhores casos – existe um planejamento e uma sequência pedagógica a seguir. E, talvez até mais importante, o professor pode se pegar na angústia em ver-se repetindo uma atividade, com receio de que isto impeça o avanço da turma nas aprendizagens. Trago este ponto por ter vivido tal dilema um sem-número de vezes.
Repetir ou não determinada atividade, acolher ou não a demanda dos alunos vai dizer, evidentemente, da sensibilidade e do planejamento. O que desejo ressaltar é a legitimidade do pedido infantil. A angústia do adulto, normalmente, está ligada à imagem que ele pode começar a fazer de si mesmo e de suas aulas: não apresentar novidades, ficar estagnado, preguiçoso, como será visto pelos pais e/ou responsáveis; sentir-se, digamos, refém da meninada. Mas, no sentido que estou tentando apresentar, isto é coisa da nossa cabeça. A realidade pode ser bem outra.
É preciso buscar o sentido das coisas. Repetir uma brincadeira aponta para o desejo de viver novamente algo que soa importante para a criança – além de prazeroso, claro. No caso das atividades físicas, na quadra por exemplo, remete à necessidade/vontade do próprio prazer dos movimentos: correr, saltar, rolar, desviar. Mas não só.
Dependendo de qual seja o pano de fundo – o imaginário – da atividade (pique-cola, pique-pega, polícia e ladrão, etc), comparece e se atualiza todo um fundo psíquico, vindo dos recônditos do inconsciente, que empurra o sujeito para as vivências de: pegar, fugir, escapar, lutar, pedir ajuda, ajudar, etc. Todo este mundo que pede passagem para ser vivenciado (não só imaginado) permite à criança encontrar novas soluções para seus pequenos grandes dilemas; dramas que todos passamos, mas que pelo viés da brincadeira pode ajudar alguém (alguns muitos) a elaborar uma questão. O medo de ser pego, a vontade em ajudar, a coragem e tantos outros sentimentos. A repetição se presta a isso. As crianças têm curiosidades e dilemas em relação às suas próprias vidas tanto como nós, adultos, e isto não deve ser perdido de vista. Elas só os vivem de maneira diferente da nossa, por conta das características próprias da infância – que ainda está no início da descoberta do mundo.
Daí que estas repetições, mais do que caprichos ou manhas infantis, muitas vezes são demandas que precisam ser, ao menos, acolhidas pelo adulto. Escutadas, percebidas, admitidas. Se vai ser possível atendê-los naquele momento, naquela aula, naquela fase do ano, ou não, entra na negociação com a realidade mais ampla das coisas, do clube, da escola, dos prazos e datas, por exemplo. É evidente, também, que a repetição deve ter seus limites, no sentido de não empacar a turma e cair deliberadamente numa atitude preguiçosa. Não é disso que estou falando.
Mas o professor não precisa ficar em apuros. Nem criar uma rixa com a turma por conta destas questões. O fator fundamental é ter consciência para onde se está caminhando. Num mundo aonde o frenesi e a excitação parecem comandar a infinidade de atividades que as crianças, supostamente, precisam fazer para estarem aptas socialmente, a demanda por repetição pode, inclusive, significar um pedido de… tempo. Para viver o que querem viver. O professor pode ser um mediador privilegiado neste sentido.
Fico pensando em nós, adultos, que somos identificados justamente pelos nossos hábitos e pelas coisas que, repetidamente fazemos: aonde comemos, com quem saímos, qual esporte gostamos, como trabalhamos…
Aquele abraço, saudações esportivas
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Adorei o texto e a reflexão! Sempre converso com meus professores de dança sobre não temer a repetição, ainda mais quando solicitada pelas crianças. Muito bom que o texto humaniza o professor que sempre está em conflito com as diversas demandas e expectativas do empregador, pais e alunos. Por isso lecionar é um desafio diário, um exercício de presença e escolhas diárias. Vou encaminhar o texto para minha equipe e trocar esta bola com o povo da dança. Obrigada!
Parabéns Rodrigo, Muito bem lembrado! O processo na aprendizagem, é mais importante que o resultado, Bjs!
Isso aí!
Bjs
Pois é, o professor também é de carne e osso 🙂
Valeu o comentário, obrigado!
Excelente postagem, Rodrigo.
Fez-me lembrar de uma frase que sempre ouço de meus pequenos quando adoram alguma palhaçada que faço:
– De novo, Papai! De novo!!
Fez-me pensar tb sobre ser criança e ser adulto.
Será que são apenas as crianças que querem repetir – à exaustão – aquilo que adoraram fazer ou ouvir?
Quem não gosta de repetir o sorvete predileto? Ou aquela pizza especial com cerveja? Quem não viaja pro mesmo lugar há anos e faz as mesmas coisas? Quem não repete o beijo, sem parar, quando está apaixonado?
Atire a primeira pedra quem não ouve dez vezes seguidas a locução do Jorge Cury de seu gol favorito! rsrs
Certo mesmo é o seguinte: se eles querem bis, é porque a história foi bem contada, o exercício deu certo.
Adulto, criança. Criança, adulto.
Sabe, Rodrigo, tem hora que eu acho que é tudo a mesma coisa.
Humano, demasiado humano…
Abs,
Fred
Rodrigo, muito bom esse texto. Você abordou uma questão de grande importância para as crianças.
Um grande abraço pra você. E esse texto também vai para o próximo livro.