Caríssimos (as),
Tenho uma boa história que, creio, será interessante contar. O fulaninho, ali pelos cinco ou seis anos de idade, participava de um antigo e conhecido treinamento cujo desafio é passear com a bola por entre os cones, ziguezagueando para conseguir atingir um certo domínio sobre a pelota, o que implica imprimir um ritmo adequado à corrida, uma força suficiente para conduzir a bola sem que ela fuja, etc. Normalmente estas coisas vão se desenvolvendo pela própria brincadeira de bola e pelo jogo de futebol em si, mas estes treinos podem ajudar bastante, em especial àqueles que não são notadamente habilidosos.
Daí que em dado momento, após fracassar uma ou duas vezes, eu me aproximei dele e sugeri que fizesse um pouco mais devagar, pois estava atropelando os cones. Era claramente, para além da habilidade em si, uma questão de poder reconhecer os ritmos do próprio corpo. Me escutou, retornou ao início da sequência e… novamente a bola fugiu-lhe aos pés, derrubando tudo pela frente. O menino pegou a bola com as mãos, ergueu-a como que mostrando para mim alguma coisa e tascou, sem hesitar: “Professor, troque esta bola por favor, ela está estragada.” Pano rápido!
Não resisti a uma pequena e natural gargalhada. Me abaixei, expliquei que a bola estava perfeitamente normal e que ele devia estar um pouco chateado por não conseguir cumprir a tarefa. Pedi que saísse da fila para dar vez aos colegas, ficamos os dois observando como os amigos faziam. Me vali de uma provocação ao seu imaginário, na tentativa de ajudá-lo a corporificar um outro ritmo: “Por que você não tenta fazer o exercício como se fosse uma tartaruga, bem devagar?“, sugeri. Ele pediu para tentar novamente, voltou ao final da fila e conseguiu. Fez beeem devagar, quase parando. Pois bem, como não disponho de grupo controle não posso afirmar com o rigor dos manuais, mas o fato é que após todo este processo ele passou a realizar melhor o percurso e vem progredindo aos poucos.
O que agora desejo ressaltar é a manobra psíquica realizada pelo pequeno jogador: ao constatar que não obtivera sucesso repetidas vezes, deslocou sua angústia para a pobre bola. Ela só podia ter algum defeito. A maneira infantil de lidar com a frustração não é privilégio das crianças. Quantos adultos não conhecemos que poderiam assumir comportamento semelhante? Ou, muitas vezes, não é preciso ir longe se pudermos ser honestos… Quem nunca?
No entanto é muito importante poder ajudar a criança a lidar com a frustração. Implica reconhecer a dificuldade, que é aquilo que aponta para a
imperfeição. Que pode assumir significados insuportáveis se o sujeito ainda estiver muito atado ao nó do seu próprio sentimento de onipotência. Quero dizer com isso que há um deslizamento necessário a ser realizado com a ajuda do adulto. Podemos dizer que a maneira de lidar com a frustração diz muito sobre como se negocia a imagem de si com a
realidade compartilhada, objetivamente percebida pelas outras pessoas. Como é mostrar-se imperfeito? Vou dar um passo atrás.
O sentimento de onipotência está na base do desenvolvimento infantil. É uma ilusão benfazeja. Um bebê tem de ser atendido praticamente o tempo todo, a partir de uma mãe comumente devotada aos seus cuidados, bem como do entorno a quem todos fascina. His Majesty, the baby, disse Freud. Se estas coisas correm bem na vida da pessoa, adquire-se aos poucos a confiança necessária para avançar sobre o mundo e seus objetos, conhecê-los, experimentá-los, tentar dominá-los. Quando a criança vai assumindo mais jeitão de criança e menos de bebê, esta onipotência vai cedendo a olhos vistos; ela consegue então realizar pequenas tarefas e seu processo de socialização começa de maneira mais efetiva, dentre outros aspectos pela própria capacidade psicomotora em franco desenvolvimento.
Assim, neste processo, lidar com as frustrações – que vão se apresentando na vida mais ampla – tem relação direta com a capacidade de fulano ou beltrano em poder ceder de sua onipotência. A criança em boas condições de saúde pode declinar pouco a pouco de seus caprichos, na medida em que enxerga ganhos aí. As aprendizagens, as amizades, o brincar sem a presença do adulto… Evidente que não há uma medida exata devido à singularidade humana, mas é também evidente quando a tolerância à frustração está em baixa a ponto de prejudicar ele ou ela em suas atividades cotidianas.
Poder viver a frustração, com a ajuda do adulto, facilitará à criança justamente o deslizamento ao qual me referi acima: oni > potência. Digo, entre uma perfeição imaginária (“a bola está estragada, eu não tenho dificuldade alguma”) e o medo de um fracasso total aos olhos do adulto (desistir, por conta do insuportável da frustração em si), o importante é ajudá-la a adentrar o terreno do possível. Pois é aí, neste fino ajuste entre os mundos interno e externo, que se dará algo como um sentimento de potência de vida, mais amadurecido. De ‘ser capaz de’. Trocando em miúdos: potência é diferente de onipotência. A primeira admite o incontornável da condição humana. Logo, é real.
Voltando ao meu amigo da história, ele continua fazendo os exercícios, olha pra mim ressabiado, parece querer que eu confirme se ele é bom ou não. Às vezes faço cara de paisagem, quando sinto que ele já pode seguir por conta própria; noutras, vou até lá escutar seus choramingos. Mas acho que ele está se convencendo: não é possível que a bola esteja sempre estragada.
Aquele abraço, saudações esportivas
Excelente! Você é um ótimo psicoterapeuta! Abração – bem grande!
Muito bom!
Compartilhei no Facebook.
=)
Bom texto, Rodrigo.
Já pensou em publicar uma seleção deles?
Abs,
F
Tá no forno!
abs
Muito maneiro!
Muito bom exemplo Rodrigo. Um abraço.
Professor, parabéns!! Excelente tema e abordagem. Obrigado por permitir a reprodução em nosso site!! Grande abraço e que continue com esse trabalho de excelência.
Valeu a parceria!
Muito bacana!
Nos dias de hoje vemos muitos adultos deslocando sua frustração em outros, e até outras em coisas. Muito boa sua abordagem.
Abraços.
Professor Enio