Nu, de botas (2)

Por Rodrigo Tupinamba Carvao
em 23/02/2015 |
Categorias: Sem categoria
Prezados (as),
“Ainda não estamos habituados com o mundo. 
Nascer é muito comprido.”
(Murilo Mendes)
É evidente que a roda da história não gira para trás – mas por outro lado, como disse Gandhi, o Mahatma, progresso não significa fazer as coisas cada vez mais rápido. Precisei deste pequeno introito porque fiquei bastante mobilizado com uma conversa que tive, no último finde, com amigos do peito. Conversa que virou acalorado debate, destes que versam sobre o tudo e o nada das coisas, das ciências, das gentes. Daí que, em dado momento, nos pegamos diante da velha questão: o mundo de hoje é pior ou melhor do que já foi? O progresso científico e tecnológico tornou a vida da maioria das pessoas necessariamente melhor? Melhor para quem, em que sentido? 
Entre os crédulos no progresso da humanidade e os pessimistas irredutíveis, confesso meu ceticismo. O cético é, por definição, aquele que duvida – inclusive de si próprio (oh, céus!). Isso não significa, no entanto, paralisia de movimento; mas assumir posições sabendo de antemão de suas fragilidades. Sempre existe o outro lado. Logo, como a dita conversa caiu na infância (melhorou? piorou?), achei por bem trazer para este espaço. Porque a infância é, por definição, frágil. E, se hoje há toda uma parafernália tecno-científica ao seu dispor, talvez isso não signifique que a estejamos compreendendo melhor. Ninguém é bobo de negar as benesses da tecnologia, mas o mal-estar que lota os consultórios e ocupa especialistas denuncia isso.  
Tenhamos isso em mente: a infância é frágil. Requer cuidados. Mais do que isso, sensibilidade. Sensibilidade é coisa das gentes. O mundo? É o que ele é. Maravilhoso e violentamente estúpido, como sempre foi (com amigos é sempre melhor). Segue um segundo recorte de ‘Nu, de botas’ – da sensibilidade de Antonio Prata. Boa leitura!
“Primeira série, escola nova. Em lugar da balbúrdia do tanque de areia, a geometria das quadras poliesportivas; em vez do chão protegido por linóleo, a aspereza do concreto; pelas paredes, as sílabas não eram mais do bê-à-bá, mas da tabela periódica; os desenhos feitos com as mãos sujas de guache davam lugar aos diferentes tons dos países e estados, na cartografia ainda incompreensível do novo mundo ao qual acabávamos de ser admitidos.

De tudo, o que mais me impressionou foi o laboratório. Os tubos de ensaio, potes de vidro, serpentinas, substâncias coloridas e nauseabundas faziam daquela parte do colégio um elo entre o passado e o futuro, entre a bruxaria dos contos de fada e a ciência (não menos mágica) das reações químicas. (…) Se o céu era o limite para minhas expectativas, imagine meu entusiasmo ao saber que iríamos começar direto por ele: segundo nos informou a professora de ciências no fim do primeiro dia de aula, na manhã seguinte aprenderíamos a ‘fazer chuva‘.

(…) Para minha surpresa, a professora pegou um vidro do tamanho de um pote de maionese e uma mangueira com uma chama na ponta, não muito maior do que um isqueiro Bic: “A gente só precisa disso aqui ó: calor e água”. Só? Nem uma pitada de pó secreto, tirado com luva cirúrgica de um pote com a clássica imagem da caveira cruzada por ossos e a palavra ‘PERIGO!’?

(…)Enquanto a água esquentava, a professora nos contou o que veríamos a seguir: de forma clara e compreensível, explicou o processo de ebulição, evaporação e condensação. (…) Nenhum trovão? Nenhum relâmpago? Nem mesmo um ventinho a balançar as persianas do laboratório? Só uma goteira através do vidro embaçado? Como podiam chamar aquilo de chuva? O pior é que eu entendi perfeitamente como: o mundo era um béquer, o sol era o bico de Bunsen, os rios, lagos e oceanos eram aqueles dois dedos de água. Eu havia mordido o fruto da árvore da Ciência do Bem e do Mal e tinha sido expulso do Éden, não existiam mais bruxas nem dragões, poções mágicas ou varas de condão, e a natureza cabia num pote de maionese.”

[Adaptado de ‘Nu, de botas‘ – Antonio Prata, 2013]

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6 Comments

  1. Leana fevereiro 25, 2015 at 1:56 pm - Reply

    Rodrigo, como sempre, seus temas são ótimos!!
    Abc
    Leana

  2. Paola fevereiro 25, 2015 at 1:57 pm - Reply

    Rodrigo, ótima reflexão ! e que privilegio ter esses amigos para poder trocar essas ideias – continua dividindo com a gente, ok ?

    Bj e bom retorno ás aulas

    paola

  3. Tania fevereiro 25, 2015 at 1:58 pm - Reply

    Muito bom!

    Adorei a reflexão!!

    Valeu!!

  4. Rodrigo Tupinambá Carvão fevereiro 25, 2015 at 1:58 pm - Reply

    Pois é, turma da boa!

    beijos!

  5. Irles fevereiro 25, 2015 at 2:00 pm - Reply

    Boa noite, Rodrigo,

    Seu convite, no texto, me instigou a buscar a íntegra da postagem e vi tb o trecho da aula de Davy. Bom!!!
    Bjs,
    irles

  6. Iva fevereiro 27, 2015 at 1:42 pm - Reply

    Adoro seus textos, sempre muito carinhosos!
    Bjs

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