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Futebol e fantasia

Tem sido muito comum papais e mamães comentarem, junto aos professores, que fulano ‘recuperou o gosto pelo futebol’; ou que ‘agora está fissurado, só quer saber disso’ – depois de terem vivido experiências difíceis em outros lugares. Soa como um agrado, mas não deixa de despertar questões.

As escolinhas de futebol viraram um grande mercado esportivo no Brasil. Com a escassez de tempo, espaço e segurança para as brincadeiras (e o futebol) de rua, os clubes, já de algumas décadas para cá, são o destino natural de ocupação de tempo e atividade infanto-juvenis.

Naturalmente, tudo isso acontece nas camadas da população com acesso a estes serviços.

Serviços estes que passaram a ser oferecidos e apresentados acompanhando, justamente, a explosão midiática e as cifras outrora impensáveis que agora fazem parte do esporte.

Ocorre que, nesse pacote, inflado aliás por clubes internacionais e suas franquias, o que está chegando para muitas crianças (e suas famílias) não é mais uma simples aula: fazer parte de um time, aprender, fazer amigos e se divertir. O que se está vendendo, em muitos lugares, é a imagem de ‘ser jogador’ – e não a fantasia.

Explico: as crianças menos habilidosas, o menino desajeitado que quer simplesmente brincar de futebol não consegue, por mais que tente, se encaixar neste modelo.

O modelo do ter que ser bom; da exigência de atividades com vocabulários altamente sofisticados para crianças pequenas (‘amplitude’, ‘profundidade’, ‘transição’); o modelo, enfim, não de poder brincar de bola e se fantasiar de jogador – mas de ter que ser jogador, só que sem as habilidades para isso.

A figura do profissional de educação física, ele também pressionado por mostrar serviço, se investe do papel de treinador, antes de ser professor. Pois de que outra maneira, dentro dessa lógica, poderia demonstrar conhecimento, sentir-se valorizado e gostar do que faz?

Dado o tamanho da exigência, enfim, o Real disso tudo tem ficado insuportável para muitas crianças e adolescentes. Começa a rolar uma decepção consigo próprio (“não sou bom“), diante do inatingível.

Estou tentando dizer que a exigência por desempenho, ao tomar o lugar da pedagogia, destrói a fantasia e instala um sentimento de inadequação. No mais das vezes, a criança desiste de jogar futebol. Que fazer?

É mais jogo investir na fantasia. Ali, o jogador mirim pode continuar devaneando, sonhando, perseguindo objetivos pessoais e, assim, aprendendo.

Rasgar a fantasia é quebrar a brincadeira, e a brincadeira só é possível numa proposta pedagógica em que ela seja contemplada.

A boa é vestir a camisa do time de coração, do clube de bairro, e poder chutar, errar, dar umas furadas, meter uma bola na gaveta e partir pro abraço com os amigos. Todo mundo fantasiado.

Algumas fantasias, aliás, podem durar uma vida inteira.

Aquele abraço, saudações esportivas

This Post Has 13 Comments

  1. Super importante e contundente essa reflexão.
    Venho acompanhando tudo isso por aqui. Tomás Zazu fissurado, só querendo saber disso. Ele está crescendo e precisando muito de movimento. A escola cada vez mais “mental”, esse ano tiraram a capoeira para terem inglês todos os dias. Achei um erro. A educação entendendo cada vez mais que a melhor forma de preparar um aluno pro mundo é exigindo concentração mental e ganhando currículo.
    Uma criança que vive o movimento, a complexidade de um jogo, pra mim estará bem mais bem preparada para aprender inglês, inclusive.
    Enfim… senti que o futebol entrou muito bem por aqui, por todas as razões que apontou no texto.

    Vamos nessa!
    Bjos
    Alessandra

  2. Concordo 100% com o colocado no texto abaixo. Muito bacana ver a mentalidade do Projeto Chutebol na prática. Parabéns aos idealizadores e ao professores pelo trabalho.

    Abs
    Carlos Medicis (pai João Manuel 11 anos)

  3. Estou conversando com meus alunos de educação física e os de futsal sobre a época que estamos vivendo .
    Estamos lutando contra as desigualdades , o preconceito de cor , opção sexual e outras coisas . O que é ótimo , que sigamos assim , mas quando falamos de preconceito dos não habilidosos eu não vejo isso . Ninguém quer abraçar , trazer para o seu time o ” pereba ” . Coloco eles para pensar nisso , será que eles querem lutar por igualdade só fora da quadra ?
    Abraço !!!

  4. Excelente, Tupa!

    Quim agora quer me mostrar um ‘novo drible’ a cada dia.

    Ontem, eu disse, em tom de pergunta: “como é gostoso driblar, não é?”

    Ele respondeu “é MUITO gostoso!”

    .. e eu sorri de alegria. ; )

  5. Rodrigo, excelente seu texto.
    É bem isso que sentimos nos meninos da turma que são ou aficcionados por futebol (às vezes além do ponto, sendo até chato) e outros que tem um profundo trauma ou vergonha de jogarem bola por não se considerarem bons o suficiente.

    Parabéns
    Grande abraço

  6. Oi, Rodrigo.
    Passando só para dizer que dá um quentinho no coração saber que meu filho está em tão boas mãos!
    Vida longa ao Chutebol!
    bjs

  7. Muito bom, Rodrigo

    Vejo com tristeza amigos do Felipe que estão literalmente perdendo a infância fazendo treinos e jogos inúmeras vezes por semana, inclusive nos fins de semana, e em lugares distantes

  8. Bom dia Rodrigo.

    Perfeita colocação.

    Leo está adorando experimentar a brincadeira de jogar futebol e fazer novos amigos.

    Grato,
    Santiago

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