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Jogadoras

Existem razões históricas e culturais para que o futebol seja um jogo com forte predominância masculina. No entanto, como professor de Educação Física de escolas e clubes ao longo de duas décadas, trabalhei com muitas jogadoras, crianças, adolescentes e adultas. Daí que jamais enxerguei qualquer impossibilidade ou inapetência motora para que pudessem aprender a jogar futebol.
 
Ao me deparar novamente com uma turma feminina me peguei recordando experiências anteriores e, assim, surgiu a vontade de escrever sobre o assunto. Creio que a inspiração veio da satisfação em vê-las treinando com uma entrega e uma alegria que faria bem ao sabichões da bola. 
 
 
É sabido que, culturalmente, a menina é menos encorajada a arriscar-se com o corpo do que o menino. Evoluímos nas últimas décadas, mas parece ainda válido como regra geral. Então, quando chega a idade escolar, lá estão os meninos ávidos para jogar um futebolzinho na aula de Educação Física – e as meninas, salvo uma minoria, desanimadas, fazendo por fazer, cumprindo tabela. Na infância, pelo próprio impulso infantil em brincar, isto é minorado. Mas, quando entram na adolescência, é covardia – tudo serve para escapar daquela tortura: é atestado, é que está menstruada, é dor de cabeça, é cólica… 
Aliás, a conhecida precariedade do trabalho desta disciplina no Brasil é um problema que estamos longe de resolver. Não precisa ser especialista no assunto: basta que cada um(a) tente lembrar, num simples exercício de memória, como foi em média a qualidade das aulas de Educação Física durante o seu período escolar. Em que pese o esforço de nós, professores, tenho a mais absoluta certeza de que o resultado geral, com as exceções de praxe, é um vexame para os profissionais da área. Este é um assunto sobre o qual pretendo escrever mais adiante.
Meu ponto agora é o seguinte: este quadro atinge de maneira mais aguda o público feminino.
E por quê? Porque, na maior parte dos casos, a Educação Física, a partir do segundo segmento do Ensino Fundamental, acaba se tornando sinônimo de ‘esporte‘. E na verdade são duas coisas distintas. O esporte é uma forma já muito sofisticada de atividade física, com suas regras, seus gestos motores mais refinados, posicionamentos e estratégias diversas. Para se chegar lá é preciso todo um percurso, digamos, social e psicomotor.  
Ora, se as meninas são culturalmente menos encorajadas a arriscar-se com o corpo, é fundamental abrir o jogo: escutá-las, perguntar pelos percursos. A maioria não gosta de esporte – nem de Educação Física – porque nunca sentiu prazer ou enxergou sentido em nenhuma destas atividades. Percebe-se então o desconforto em suar, em realizar algum esforço, o medo de levar bolada, o material que pode machucar, o receio de o professor ficar gritando e dizendo que está errado… Para além das diferenças de natureza entre ser menino ou menina, por que será que se escuta tanto elas dizerem: “Ah, professor, não tenho coordenação” ? Isto é inato?
É muito ruim este quadro ser visto como natural. Não precisa ser assim. Todas as vezes em que tive a oportunidade de apresentar a brincadeira como base da aprendizagem (inclusive no Ensino Médio), as alunas compraram a ideia. Mas por que? Porque brincar é bom, prazeroso. Freud dizia que o oposto da brincadeira não é a seriedade, mas sim a realidade. A possibilidade de devanear, de rir com os (as) colegas, de não fazer ‘errado’, de poder apresentar uma atitude relaxada (mental e corporalmente) faz com que o ambiente se torne convidativo. Convidativo a outras propostas que, se esta primeira etapa tiver sido boa o suficiente, costumam ser tomadas como desafio pela aluna. A pessoa já pode passar então a se arriscar, posto que se apropriou da atividade como sendo sua, também. Se torna um pequeno projeto – o que é muito diferente de uma mera imposição sem sentido. É a via da brincadeira que permite a intimidade com o próprio corpo, o desenvolvimento primordial dos movimentos naturais e das habilidades motoras, uma socialização efetiva e, por fim, o gosto posterior (por conta da experiência positiva) em praticar alguma atividade física.

 

Quando todo este processo funciona, elas dão um banho: realizam as propostas com as qualidades femininas do esmero, do cuidado com os colegas e da preocupação genuína em melhorarem naquilo que estão fazendo. Com este diálogo aberto, muitas vezes, ainda crianças, as meninas pedem um momento da aula em que sejam separadas dos meninos, no intuito de poderem fazer algum jogo de acordo com suas próprias condições. Ficam aí à vontade aquelas que já se sentem confiantes o suficiente para jogar junto aos meninos, dado que estes normalmente se apresentam mais íntimos da maioria dos jogos (convencionou-se recentemente uma bobagem politicamente correta, segundo a qual separar meninos e meninas numa atividade física escolar é necessariamente sinal de ‘sexismo’).
O que estou tentando dizer é que existe um quadro cultural de antemão, que atinge as práticas corporais na Educação Física e termina por confirmar às meninas o seu fracasso desportivo. É na escola que isto deve ser desnaturalizado. O clube deveria ser um ganho extra.
Se, desde o início do período escolar, as meninas puderem simplesmente ser escutadas e participarem da construção de um ambiente convidativo às brincadeiras, depois aos jogos (e demais atividades possíveis) e por fim aos esportes, ao concluir sua formação terão como legado uma memória corporal afetiva, prazerosa, que as deixará mais permeável às diversas modalidades de atividades físicas disponíveis. Garanto que topam até levar bolada em jogo de futebol.
A elas, corajosas, dedico este texto.
Aquele abraço, saudações esportivas

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