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Quanto tempo o tempo tem? (3)

Caros,
No terceiro e último tempo desta série, a psicanalista Maria Rita Kehl discorre agora sobre os ‘instantâneos‘ de felicidade deste veloz século XXI. Abrindo o texto, uma singela – porém preciosa – lembrança do poeta. Boa leitura!

Temos nosso próprio tempo“. (Renato Russo)

[Clique na imagem – Tira de André Dahmer]
“O tempo é uma das dimensões da falta. O mesmo tempo de espera que inaugura a formação do aparelho psíquico, tempo que corre em ritmo distendido e alheio à urgência das demandas do Outro, introduz a falta no psiquismo. A demora é uma das manifestações mais incontornáveis da falta, para o sujeito. Inversamente, a automatização da pressa que nos leva a viver e realizar as tarefas da vida no tempo do Outro atropela o sujeito (do desejo). (…) A expressão corriqueira ‘preciso disso para ontem‘ expressa bem tal desvalorização da duração presente, a única na qual o corpo existe, respira, age (…).
Nada falta, a não ser – tempo. O tecido da vida.
(…) A tecnologia, que tanto provoca quanto acompanha as mudanças subjetivas dos homens, já oferece uma aparente solução para o vazio da experiência da sociedade contemporânea: os aparelhinhos de registrar nossa existência no tempo parecem tentar substituir o trabalho imaginário da memória. Celulares e máquinas fotográficas computadorizadas oferecem às pessoas a imagem instantânea de cada momento vivido, de modo a garantir que, pelo menos nas férias ou nas noites de sábado, alguma acontecimento tenha merecido registro – se não no psiquismo, ao menos na telinha destinada, também ela, à rápida superação.
É notável o efeito social do caráter instantâneo da reprodução fotográfica, que relegou as velhas polaroides à prateleira das velharias. Os grupos que se unem na tentativa de compartilhar um momento inesquecível dedicam-se freneticamente a registrar as provas incontestáveis de sua felicidade. Se a foto não corresponder à imagem esperada, é fácil apagá-la e substituí-la por outra, até se obter uma edição perfeita da noitada ou do fim de semana. Que por sua vez terá sido todo ele ocupado pela própria atividade de perpetuar sua existência fugaz numa foto perfeita.
Não sei se devemos considerar o afã em registrar em imagem todos os momentos da existência apenas como efeito das inovações tecnológicas e dos apelos narcísicos com que elas se oferecem aos consumidores. Talvez a necessidade de testemunhar, por meio de fotografias ou de registros em vídeo, os chamado ‘bons momentos da vida’ revele exatamente o empobrecimento da experiência que Benjamin atribuiu, desde o início do século XX, ao lugar hiperdimensionado que a técnica ocupa na vida moderna. 
Seria essa necessidade de registrar em imagens supostamente fidedignas cada momento vivido um sintoma de que a temporalidade socialmente regulada na vida contemporânea esteja encurtando a experiência subjetiva da duração? Um dos efeitos dessubjetivantes da velocidade é o empobrecimento da imaginação: o que se busca, no instante fotográfico, é uma espécie de atestado de que a vida, como action qui n’est plus soeur du rêve, tenha sido de fato vivida.”
 [Adaptado de ‘O Tempo e o Cão‘, Maria Rita Kehl, 2009]

This Post Has 2 Comments

  1. Camila disse…
    Me lembrei de um dia que eu queria tirar uma foto do arco-íris na Lagoa e um amigo disse: " Pq foto? Olha lá e curte!" Eu fiquei irritada pq eu tava numa época com máquina nova e queria tirar foto de tudo. Mas na mesma hora eu falei.. é… verdade. Tô perdendo tempo procurando máquina, a gente tava no carro, não dava p parar e apreciar nada. Só aquele rápido momento de dentro do carro.
    Engraçado é q com essa história eu lembro do arco-íris até hj…kkkk

    Na verdade eu ando muito passada c essa história de FB …

    Enjoy the moment! Sees the day!
    BJs

  2. Oi Camila, podecrê!
    Interessante você poder lembrar do arco-íris hoje, né?
    Sinal de que tua memória preserva a percepção da duração das coisas, como nos lembra (!) a Kehl.

    Digo, talvez pelo fato de você ter largado de mão tirar a foto, você pôde de fato 'curtir' (não no sentido do FB), e ficar com uma imagem ligada a um afeto, e não com uma, digamos, 'imagem-coisa' da ansiedade da maquininha!

    bjs

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