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Pedagogia da Rua

Alguns papais e mamães costumam estranhar um certo caos presente em nossas aulas. Um deles chegou a perguntar, na maior das boas intenções: “Muito legal, mas vocês não usam filas e cones como na minha época de escolinha?”.

As escolinhas se espalharam pelo país na medida em que os campinhos de futebol foram desaparecendo. Quadras e praças públicas ainda existem, mas em número reduzido e já não tão ocupadas.

O modelo (?) de desenvolvimentos das cidades brasileiras; a opção por condomínios; a agenda cheia de afazeres e as ruas cheias de carros – além das questões de violência – se misturam como causas e efeitos do seguinte fato: a rua não pertence às crianças.

Matriculada numa turma, o futebol passou a ser apresentado pelos professores de educação física, ou ex-atletas. Em busca de justificar seus saberes diante de algo tão dominado pelo público (o futebol), o que passou a acontecer foi a reprodução do jogo e do treino profissionais: métodos analíticos de aprendizagem, trabalho técnico e jogadas ensaiadas.

Ocorre que a criança ou o adolescente que chegava no passado a um clube de federação, dessas categorias de base oficiais, chegava com o ingrediente fundamental: o futebol de rua.

Ali, havia aprendido a dinâmica do jogo por intuição, por brincadeira, que é o que fazem as crianças quando têm tempo, espaço e segurança para tal. A ginga no corpo, o jogo sem bola, o ataque e os dribles fulminantes, a leitura e a comunicação verbal e pelo olhar.

Então chega o fulaninho no clube, em 2024, para treinar. Não passou pelas ruas, não tem times de bairro, não joga descalço com vinte crianças durante horas a fio na mesma semana em que frequenta a escola – mas duas magras horas semanais espremidas em sua agenda.

Para que essa criança consiga alcançar um suposto refinamento técnico, uma compreensão de jogadas elaboradas, um sistema de jogo, primeiro é necessário expô-la ao risco de… jogar.

Livremente, entre seus pares. Regras acordadas pelos grupos, intervenções curtas do professor, resolução de conflitos. Inventar soluções com o próprio corpo, cair e levantar, saber pedir ou mesmo fazer uma falta. Suportar o contato, suportar dores físicas inerentes.

Com essa base, é possível avançar em direção aos pequenos jogos, levemente sistematizados, com objetivos ainda de aprendizagens elementares, intuitivas: troca de marcação, cobertura, deslocamentos para receber a bola.

Recheando isso com brincadeiras que potencializam a socialização (piques tradicionais da cultura brasileira, às vezes incrementados com algum desafio técnico), temos aquilo a que o professor João Batista Freire nomeou como ‘Pedagogia da Rua‘.

A quantidade de tempo em movimento, em um treino com essas características, é infinitamente maior – e mais divertido – do que passar uma aula em filas, driblando cones, algo que reproduz muito pouco ou quase nada de um jogo de verdade (nada que impeça, vez por outra, o uso de filas pequenas, dinâmicas, com fins claros para um gesto específico).

Ou seja: é preciso trazer a rua para as quadras, a rua no sentido da liberdade e da quantidade de movimentos. Ela é o solo para as aprendizagens técnico-táticas.

Mas só poderá apostar nessa ideia o professor que souber justificar suas escolhas; que supere o receio de sentir-se diminuído pelo brincar infantil; que suporte também a angústia de muitos pais por aprendizagens idealizadas; que entenda a importância do jogo espontâneo como método.

E que, sobretudo, acredite na infância.

Aquele abraço, saudações esportivas

This Post Has One Comment

  1. Como alguém mais velha que tem dedicado grande parte de sua vida ao estudo do desenvolvimento e da aprendizagem, fico muito feliz quando leio um texto tão lucido e importante para muitos que ainda não compreenderam ou se rendem às propagandas que se mostram como ideias atuais e que insistem numa ação desenvolvimentista, esquecendo a natureza que envelopa todos os seres vivos. Trazer a rua para a quadra é tudo de bom. Brincar para ser grande e poder realizar. Parabéns mais uma vez Chutebol.

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